sexta-feira, 3 de outubro de 2008

MATTANA: TEATRO COM O CORPO E A ALMA


(Márcio Mattana en cena de Recreio Pingue-pongue -

Foto de Ale Haro)



Márcio Mattana (43) está entre os grandes nomes do teatro curitibano, pudera, é um dos profissionais mais respeitados no meio teatral da cidade. Tive o prazer de entrevistá-lo num bate papo que durou cerca uma hora e meia em minha casa. A entrevista, que me valeu como uma aula de história do teatro paranaense, me foi concedida na véspera do seu aniversário e que, por isso, acredito eu, lhe caiu como uma retrospectiva de toda a sua carreira.
Mattana, como é conhecido no meio, parece, de tão apaixonado pela profissão, respirar teatro. Quando fala, há certo brilho no olhar que somente os apaixonados refletem. É empolgado e, ao mesmo tempo, concentrado.
Entre todas as funções que já exerceu dentro do teatro, é hoje também professor de interpretação e direção na Faculdade de Artes do Paraná – FAP, oficio que concilia harmoniosamente com seu trabalho de ator e diretor teatral. Como toda pessoa que cultiva cada capítulo de sua história, Mattana tem muitas lembranças e curiosidades para nos contar.

Carreira

Antes de 1984, quando iniciou a faculdade de Letras em Cascavel, interior do Paraná, Márcio Mattana não imaginava os novos rumos que sua carreira tomaria. Estimulado por uma grande amiga, atriz amadora, Márcio começou a fazer parte de um grupo local e assim permaneceu atuando até 1988, época em que o movimento teatral no interior era bastante intenso. Foi nesse mesmo ano que o ex-bancário, trancou a faculdade de Letras no terceiro ano e já estava de malas prontas para vir a Curitiba prestar o vestibular da faculdade de teatro, antiga PUC e hoje FAP. E então, a partir de 1989, o jovem ator, já apaixonado, nunca mais conseguiu viver sem o famoso “friozinho na barriga”, comum a todos antes de entrar em cena. Formou em Artes Cênicas em 1992.
Como ator, já participou em mais de trinta espetáculos e tem no seu currículo vários nomes de diretores como Enéas Lour, Luthero de Almeida, Edson Bueno, Marcelo Marchioro, Ademar Guerra e Felipe Hirsch, entre outros.
Como diretor, já assinou mais de vinte espetáculos e também trabalhou como diretor de palco em São Paulo de importantes montagens de Felipe Hirsch, como Os solitários, produzida e protagonizada por Marco Nanini e Marieta Severo em 2002. Em Curitiba já revelou vários atores, atrizes e técnicos do teatro local.
Como educador, desde 2003, vem quebrando antigas posturas acadêmicas e se destacando como um dos professores mais comprometidos e admirados pelos alunos da FAP. Márcio diz que sua aptidão com a educação vem dos tempos do antigo ginásio, onde já ministrava aulas particulares para os colegas de turma que apresentavam dificuldades no desempenho curricular. Quanto à admiração dos alunos da faculdade de teatro, acredito que seu talento deve-se principalmente pela competência que tem em dirigir atores e, dessa forma, acertar na metodologia que desenvolveu ao longo de todos os anos da prática teatral.

O artista, o teatro e o público.

O DESPERTAR DA PRIMAVERA, de Frank Wedekind (1998-1999). Direção de Márcio Mattana. fotografia: Roberto Reittenbach (divulgação).



Márcio Mattana vê o teatro que é feito hoje em Curitiba sob dois prismas. O primeiro é sob seu olhar otimista em acreditar que a produção local está em um bom caminho, “anos atrás era muito mais difícil produzir teatro em Curitiba devido à baixa verba destinada aos produtores locais. (...) Ainda não tínhamos os editais de produção e circulação e nem as leis de benefício à cultura, ganhos que dissolveram as panelinhas”, completa. Por outro lado, acredita que o formato atual das leis de incentivo valoriza as produções rápidas e de pouco tempo em cartaz, “porque os atores precisam trabalhar e, portanto, devem estar em pelo menos quatro editais por ano para ganhar um salário mensal”, explica Mattana. Apesar dos devidos ajustes necessários, Márcio Mattana vê os rumos promissores da produção cultural, como, por exemplo, o financiamento da pesquisa de grupo e, por ser um artista politizado, sabe avaliar de forma bastante madura a política cultural do país.
No seu trabalho, tem como principal objetivo o público. É sobretudo com o público que seu trabalho dialoga. Não está interessado em desenvolver nenhum discurso hermético. Quer se comunicar com a platéia. Acredito que sobre esse aspecto quem mais ganha somos nós, artistas e publico. Os artistas porque terão as salas de espetáculo lotadas nos dias de apresentação e o público porque sempre voltará ao teatro.
Nesse sentido é que Márcio Mattana lança seu olhar pessimista sobre uma parcela do teatro que tem sido produzido nos dias de hoje,ou seja, “quando ainda não tínhamos as leis de incentivo, o responsável por setenta por cento dos lucros de uma produção vinha da bilheteria e isso quer dizer que o público ia muito mais ao teatro”, lembra ele. O pessimismo disso tudo é apenas enxergar que existem profissionais produzindo espetáculos descartáveis com o dinheiro público. Márcio é ético, não cita nomes, porém registra a provocação.


Novos Rumos

Para o próximo ano, Mattana já tem pelo menos três projetos fechados. Um deles é a estréia da Companhia de Repertório, companhia teatral que será lançada na cena curitibana com a direção dele para o espetáculo Pessoas comuns não dizem bom dia. Aguardamos ansiosos.
Quando, para encerrar a entrevista, pergunto a ele que se eu fosse um poderoso investidor da cultura e oferecesse a quantia necessária para produzir qualquer espetáculo, quem seriam o autor, o ator e a atriz escolhidos, ele arquitetonicamente, depois de muito pensar, responde: “bem, quanto ao ator e a atriz queria que fossem de Curitiba, então escolheria Fernanda Magnani por ser uma excelente atriz, bastante jovem e ainda desconhecida. Para contracenar com ela, convidaria um ator mais velho e bastante experiente, Luthero de Almeida. Adoraria dirigir esses dois numa adaptação do clássico Solness, O construtor de Ibsen. Mostraria o fim de uma era, através de um grande e experiente ator fazendo um construtor, e o início de outra era pelo trabalho de uma grande, porém jovem atriz interpretando uma aprendiz”.
Salve os escolhidos! Eu com certeza estaria na platéia na noite de estréia.

MODA E ARTE

(Desfile de Ronaldo Fraga)


Um dos elementos que mais me chamam a atenção na campanha de uma marca de roupa é o conceito desenvolvido pelo designer (ou estilista) na criação de uma coleção.



Os mínimos detalhes, tudo, desde a cartela de cores à ambientação de passarela no lançamento da coleção é estrategicamente pensado para que o conceito-tema seja criativamente decodificado pelo consumidor. Ler as entrelinhas da moda é uma aventura bastante prazerosa.



A moda atualmente está intimamente relacionada com diversas linguagens artísticas. Falar de moda é também falar de cinema, de música, de teatro e, sobretudo, de artes visuais. Nesse sentido, podemos considerar cada estação não apenas como um lançamento de coleção, mas como criação e desenvolvimento híbrido de um evento cultural. As artes visuais, sobretudo, estão para a moda assim como o corpo está para a roupa.



O desenvolvimento de um produto está intimamente ligado a atitude de quem vai comprá-lo. Dessa forma, cada look composto para um desfile, cada perfil de uma modelo escolhida, cada trilha sonora, cada cenário criado, tudo, absolutamente tudo deve dialogar com o conceito desenvolvido pela coleção. A linguagem visual da moda nos permite transitar pelos corredores de uma época, de um fato histórico, de uma personagem, de uma personalidade ou até mesmo de uma estória criada pela imaginação de um criador de moda.


RONALDO FRAGA, UM CRIADOR DE MODA.


O estilista mineiro Ronaldo Fraga está no hall dos criadores mais criativos do País. Gosto muito dos conceitos e criações desenvolvidos por ele a cada coleção. Ronaldo soma às criações o conforto das peças e um estilo próprio que transita do mais simples corte a mais elaborada modelagem e composição. Sua estética é também, ao meu ver, bastante teatral.
Sua marca surgiu em 1996 e de lá para cá vem ganhando muitos adeptos e consumidores. Seu universo é composto sempre por muita ousadia, bom humor, cores e texturas que valorizam uma sensualidade inocente que sempre está na contramão das tendências da moda.

Cria os figurinos da banda Pato Fu e da companhia de dança Grupo Corpo, referências nacionais da música e da dança. É dono de duas lojas no Brasil, uma em Belo Horizonte e outra em São Paulo, além de ter sua marca revendida em vários representantes no Brasil e exterior.
É um colorista genial, compõe cores que juntas impõem um discurso provocativo, elemento que está sempre presente nas estórias que nos apresenta a cada lançamento de coleção. A impressão que tenho é que qualquer nova informação, seja ela proveniente de qualquer área, pode ser utilizada por Ronaldo Fraga como um potente material criativo para o seu repertório.
As referências, apresentadas nas suas roupas, sempre são muito diversas das apresentadas na coleção passada. O teatro, a música, as artes visuais e o cinema dialogam harmoniosamente com o seu mercado da moda, sem apresentar soluções fáceis na hora de tornar sua arte em produto. É um comunicador brilhante.

Quem quiser conhecer melhor o trabalho desse talentoso estilista e se aventurar por histórias, que de tão românticas nos fazem esquecer da industrialização que impregnou o mercado da moda desde a segunda década do século vinte, deve fazer uma visita atenta ao seu site: http://www.ronaldofraga.com.br/. É uma deliciosa viagem.

domingo, 7 de setembro de 2008

ARTICULAÇÕES

(Recreio Pingue-pongue - 2008 - foto de Ale Haro)
Tudo o que está em cena produz significado e dessa forma comunica algo. O figurino também não fica fora desse discurso. Cada peça, cada adereço, cada acabamento, cada material que compõe o todo da roupa/figurino está, o tempo todo, revelando algo: uma época, um conceito, uma busca ou a negação disso tudo.A principal preocupação do figurinista na cena contemporânea é saber como lidar com essa constatação e saber o que estará colocando sobre o corpo do ator/bailarino no espaço cênico criado sobre o cenário e sob a luz. Diálogos são estabelecidos. O corpo dialoga com a roupa, que dialoga com o cenário e que juntos dialogam com a luz e, em outra instância, com o tempo. Essa é uma comunicação necessária.O caminho da articulação das imagens instaura uma problemática: tudo é signo. A roupa é signo. A ausência dela também. A cor é signo. A textura. A forma. E tudo isso é posto em movimento através do corpo. Que corpo? Em qual discurso? Em qual linguagem? A estética do espetáculo está em sintonia com a roupa/figurino?Essas e outras constatações, que posteriormente publicarei aqui, são as que movem o processo criativo do meu trabalho, relações que, independente da estética ou linguagem propostas por um espetáculo, estarão sempre presentes na articulação de um figurinista no fazer teatral.

sábado, 6 de setembro de 2008

O CORPO E A ROUPA

(Dress, Issey Miyake, década de 80 - foto arquivo)



O corpo humano é um veículo de significação primordial, nosso principal meio de interação no contexto sociocultural. O corpo é o principal canal de materialização das nossas idéias e o responsável pelas conexões com o mundo habitado, real ou inventado, pois informa e processa uma série de significações.

Nosso corpo biológico é constantemente modificado e transformado pela chamada "segunda pele", ou seja, o traje. Entre várias possibilidades de transformações no corpo (plásticas, tatuagens, implantes, etc.), o vestuário é a forma mais direta e imediata na estruturação de nosso discurso pessoal, entendendo esse discurso como nossa própria comunicação visual.

Há muito, desde a antiguidade até o nosso século, que o traje vem sendo uma ferramenta de remodelação do corpo natural, valorizando-o ou impondo-lhe novos padrões de beleza. Cinturas foram valorizadas, troncos foram alongados, silhuetas foram escondidas em determinados períodos e valorizadas em outros.

O corpo foi sempre articulado pelo traje, codificando culturas diferentes, períodos distintos e mensagens significantes.

NO TEATRO



Olga Nenevê e Eduardo Giacominni em divulgação do espetáculo PASSOS da Obragem - Teatro e Cia


(foto de Elenize Dezgeniski)




Há muito que o teatro deixou de ser somente uma arena apresentando idéias frenéticas para uma elite cultural. O que podemos observar nos nossos dias é que o teatro pode ser tanto um lugar de entretenimento quanto um lugar para reflexão sobre a vida e a arte.
A produção teatral curitibana nos apresenta espetáculos de alto nível, seja em pesquisa, em produção ou simplesmente como diversão. Várias companhias, diretores, atores e produtores vêm apresentando, em propostas diversas, espetáculos com refinamento e acabamento mais que profissionais. E, claro, há também produções que não merecem nossa presença, mas como em tudo na vida há sempre os bons e os péssimos, viramos a página.
O olhar atento e treinado de qualquer espectador que criou o hábito de freqüentar espetáculos pode escolher qual a estética teatral que melhor lhe cabe no final de semana. Existem inúmeras produções locais por preços ótimos, por menos que um ingresso para o cinema, por exemplo.
No teatro contemporâneo, ao contrário do cinema, não procuramos mais uma identificação com os personagens, mas nos comovemos com as opções e soluções que os atores e atrizes nos apresentam a cada espetáculo. O espectador de teatro não busca mais emocionar-se com a história, ou seja, com a dramaturgia, coisa tão comum no cinema e na TV, mas busca ser tocado, via razão ou emoção, com a linguagem cênica proposta.
Quando vou ao teatro, fato que se repete semanalmente e cada vez mais, espero encontrar trabalhos bem feitos que possam, de alguma forma, se comunicar comigo e pronto. Não exijo linguagens, exijo qualidade. No entanto, não está difícil encontrar bons trabalhos em cartaz nas dezenas de espaços oferecidos em Curitiba.
São poucas as ofertas que me fazem desistir da opção de ver um espetáculo antes de sair para jantar nos finais de semana. Sempre vou ao teatro. Entre dramas, comédias, teatro-físico, teatro dança e todas as demais linhas do teatro contemporâneo, acabo sempre enriquecendo meu repertório pessoal e alimentando minha alma com novos rumos para a próxima semana que inevitavelmente virá: trabalhos, reuniões, clientes e todos os demais compromissos dessa nossa vida corrida.
Posso citar e falar sobre vários nomes que vem desenvolvendo um importante trabalho em teatro na nossa cidade e pretendo fazer disso uma prática constante nas próximas edições desta coluna neste jornal. Pretendo fazer das reflexões, críticas, dicas e entrevistas, uma prática constante neste Blog.
Salve o teatro! Salve todos os profissionais e artistas que se dedicam à tão sublime arte da comunicação.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

CORPO, TECNOLOGIA E IDENTIDADE: PRESSUPOSTOS PARA A CRIAÇÃO DO FIGURINO CONTEMPORÂNEO.

(foto - arquivo)


Paulo Vinicius Alves


Este trabalho tem como objetivo principal apresentar uma reflexão, dentre várias outras possíveis, que deve anteceder a criação do figurino na cena contemporânea. Ao me debruçar sobre as artes cênicas, percebo que a cena contemporânea, sobretudo nos trabalhos de teatro e dança-teatro, estabelece muitas vezes a dramaturgia corporal como o seu principal viés de construção artística. Dessa forma, para se falar em figurino contemporâneo devo, primeiramente, falar em outros elementos que devem ser pensados antes da criação da roupa-figurino: o corpo, a tecnologia e a identidade. Tal reflexão foi estimulada pelas leituras das obras Culturas e artes do pós-humano da pesquisadora Lúcia Santaella e de Corpo modificado, corpo livre? de autoria da Kênia Kemp.

O corpo: um suporte em simbiose com a tecnologia



O corpo é o primeiro elemento a ser resgatado na discussão teórica e prática do processo de criação. É ele que vai estabelecer um diálogo efetivo com o figurino. O estudo do corpo contemporâneo é de extrema importância porque é sobre ele que se ergue toda a construção artística. O corpo é o suporte da roupa-figurino e, independente do estilo e formato das criações, sempre a composição (corpo x figurino) estará produzindo signos e significados que serão interpretados pela platéia correspondente, ou seja, como nos define a semiótica, que estuda as linguagens verbais e não verbais de qualquer discurso, tudo o que estará em cena estabelecerá um significado.
Embasado pelos estudos de Lúcia Santaella, posso afirmar que o corpo humano hoje não mais se define independentemente da sua relação com a tecnologia. Posso inclusive definir o corpo humano contemporâneo como uma combinação homem x máquina. Isso se deve pela presença da tecnologia nas mais diversas atuações do corpo, ou seja, desde a utilização de meios tecnológicos pela indústria têxtil na concepção de novos tecidos e materiais utilizados nas roupas, quanto nos procedimentos de modificações corporais estimulados pela tecnologia. O corpo humano hoje está totalmente relacionado com a tecnologia nas mais diversas áreas de atuação, seja na saúde, na estética, no campo intelectual ou na criação artística. Lúcia Santaella estabelece a idéia das múltiplas realidades do corpo, ou seja, enquanto o corpo se relaciona com a tecnologia, ele está sob uma nova realidade, “dada a aceleração das transformações tecnológicas que necessariamente trazem conseqüências para o estatuto e a realidade do corpo humano” (SANTAELLA: 2003, Pág. 200). Dentre todas as realidades que ela apresenta no capítulo 8 de seu livro Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à cibercultura, destaco duas realidades que serão importantes para essa reflexão: o corpo remodelado e o corpo protético. Segundo Lúcia, ao definir o corpo remodelado, o corpo humano pode ser modificado pela utilização da tecnologia desde as práticas simples como ginásticas e dietas alimentares quanto às práticas mais complexas como as cirurgias plásticas estéticas ou corretivas, ou seja, “trata-se do corpo construído com técnicas de aprimoramento físico” (SANTAELLA: 2004, Pág. 98). A outra realidade possível do corpo, relevante para esta reflexão e para a compreensão da relação do corpo com a tecnologia, é definida por Lúcia como o corpo protético. Como corpo protético, ela nos define todos os corpos alterados pela colocação de próteses, desde as mais simples, como as lentes corretivas para os olhos e as próteses dentárias, quanto as mais complexas, como a implantação de membros artificiais ao organismo e os implantes de órgãos artificiais, isto é, “é o corpo ciborgue, híbrido, corrigido e expandido através de próteses, construções artificiais, como substituto ou amplificação de funções orgânicas” (SANTAELLA: 2004, Pág. 98).
O corpo humano não é mais apenas uma natural combinação de órgãos, glândulas e esqueleto, mas também uma combinação de toda sua natureza com a integração de processos tecnológicos que constituem o corpo biocibernético, isto é, um corpo apresentado por Lúcia como o corpo em simbiose com as mais diversas tecnologias de ponta.
Quanto às idéias de Kênia Kemp, me aproprio de dois conceitos que também se referem à relação do corpo com a tecnologia: as modificações invasivas e as modificações não-invasivas. No seu livro Corpo modificado, corpo livre?, Kênia compartilha da mesma idéia que Lúcia Santaella ao dizer que o corpo contemporâneo pode ser classificado como um ciborg, ou seja, um corpo que sintetiza a combinação do organismo com a máquina. As modificações não-invasivas, segundo ela, são todas e quaisquer alterações pelas quais o corpo passa e que são reversíveis, isto é, modificações corporais pelo uso de roupas, maquiagens, tinturas de cabelo, esmalte para unhas, etc. Tais modificações podem remodelar um corpo temporariamente e sem modificar agressivamente o corpo e “constituem um importante campo de investigação em que podemos perceber o corpo como construção social” (KEMP, Pág. 41). Quanto às modificações invasivas, Kênia cita a prática de tatuagens, a colocação de piercins, alargadores de orelhas, implantes de próteses e cirurgias plásticas no geral. Modificações como essas podem remodelar o corpo muitas vezes de forma irreversível e ou agressiva, porém “o indivíduo consome as inúmeras formas de modificação corporal na expectativa de melhorar sua interação social” (KEMP, Pág. 66).
Essas classificações, tanto as de Lúcia quanto as de Kênia, são de extrema importância para se pensar no corpo do ator/bailarino na cena contemporânea. O corpo, sendo o suporte para a roupa-figurino e não sendo mais um organismo que existe independente da tecnologia, deve ser revisitado como um novo objeto de estudo. Várias novas possibilidades de aproveitamento desse corpo poderão ser exploradas através da roupa-figurino, já que, por um lado, o figurino é “tudo aquilo que cobre o corpo do ator quando ele está em cena”, como define a pesquisadora Amábilis de Jesus na sua dissertação de mestrado Para evitar o “costume”: figurino-dramaturgia. Por outro lado, as modificações que o corpo do ator pode sofrer por conta do figurino são também novas propostas que serão abordadas num segundo momento desta pesquisa. Por enquanto a possibilidade do estudo do corpo e sua relação com a tecnologia é o alvo central da presente reflexão e deverá satisfazer um dos objetivos do presente texto.

A identidade: um veículo de significação das convenções.


A identidade é antes de qualquer coisa um processo. Ela é construída e reconstruída constantemente em relação a vários fatores, tais como influência do meio, história pessoal e condições de escolhas. Nesse aspecto existe uma relevante produção intelectual que discute a relação entre o indivíduo e a sociedade. (KEMP, Pág. 28)
Outro objetivo pertinente a esta fase da pesquisa é a relação desse mesmo corpo, em simbiose com a tecnologia, com as questões referentes à identidade. A linguagem corporal codifica padrões que podemos defini-los como tipos de comportamento. A linguagem do corpo emite significados que são interpretados pelo Outro e, a partir daí, somos enquadrados em padrões ou grupos específicos, o que podemos definir, desde os primórdios das civilizações, como convenções. Posso inclusive remeter a reflexão das linguagens corporais à idéia de persona, ou seja, a máscara social que escolhemos para “atuar” em determinado setor da vida. A idéia de persona também gera a idéia de ator social, ou seja, estamos constantemente representando papéis nas mais diversas áreas do campo social, ocupando “cenários” e contracenando com “coadjuvantes” diferentes. Tais considerações são bastante complexas e podem ser aprofundadas, porém aqui nos cabe apenas o objetivo de entender que o corpo é o mais importante veículo difusor do nosso discurso pessoal e que as mensagens que ele instaura nas relações inter-pessoais o identifica segundo os códigos dessa mesma linguagem.
O “texto” falado pelo corpo nos delata tão intensamente ao ponto de ser determinante e revelador da nossa identidade. Estando o corpo contemporâneo permanentemente obrigado a dialogar com as ferramentas tecnológicas, dessa forma, a própria tecnologia ocupa um lugar de unidade de medida para se definir o padrão social do ser humano. Pensar a tecnologia também é tarefa necessária ao refletir sobre a identidade, pois ela está intensamente presente no corpo dos seres humanos, interna ou externamente, seja nas modificações sofridas pelo corpo humano, como plásticas, próteses, dietas e implantes, ou nas modificações que o corpo sofre pelos elementos descartáveis, também provenientes da tecnologia, como roupas, acessórios e adereços, como mostram as reflexões citadas de Lúcia Santaella e Kênia Kêmp.
Ao corpo do artista, apesar de treinado, também pode-se aplicar a análise comportamental. As escolhas corporais que atores e bailarinos adotam para estabelecer a comunicação, bem como os tipos físicos desses profissionais nos remetem à determinados padrões estéticos, comportamentais, sociais e também psicológicos. Tais padrões estão diretamente definindo signos que vem a construir uma identidade específica. Quando estamos no teatro, assistindo a um espetáculo de teatro ou dança-teatro, observamos que o corpo dos atores/bailarinos “fala” tão alto quanto o texto verbal. A análise dessa linguagem, bem como suas relações com a tecnologia, também nos define signos, diretos ou complexos, que comunicam e se enquadram também em determinada opção artística, ou seja, também identifica a identidade desse discurso.
A cultura do corpo, tão presente desde a passagem do século XX para o XXI, aliada às técnicas de remodelamento corporal, vem se intensificando na atualidade e são características pelas quais também podemos definir certos padrões de comportamento. A subjetividade contemporânea se manifesta no próprio corpo humano e, por isso, estar concentrado nos cuidados com o corpo é hoje um fator característico da sociedade atual.

A roupa/figurino vestindo o corpo contemporâneo.



A partir da constatação de que o corpo do artista passou a ser o próprio objeto da sua arte, imprimindo na dramaturgia do corpo o principal conteúdo do seu discurso, posso afirmar que o figurino na cena contemporânea tornou-se tão necessário quanto o próprio corpo.
A roupa/figurino apresenta significados desde as mais simples referência de época quanto às propostas conceituais mais complexas de leitura. Em todos os casos, o figurino vai estar, indispensavelmente, dialogando com todos os elementos que compõem a cena.
O que observo, na maioria dos trabalhos de teatro e dança da contemporaneidade, é que o que está em cena, mais do que um personagem, é o próprio artista se mostrando e se revelando diante do público. O artista está presente inteiramente no seu discurso, dessa forma, o figurino deverá estabelecer um perfeito diálogo com seu suporte, o corpo, e para que isso seja realmente possível deve-se saber sobre o que vai ser dito, por quem, como e por que. Essa é uma missão importante do figurinista.
È justamente nessa esfera de problematização que as questões sobre o corpo, a tecnologia e a identidade devem preceder a criação de uma roupa/figurino que cobrirá um veículo que há muito deixou de ser meramente explicativo e que passou a ser, sobretudo, provocativo e questionador: a cena contemporânea.





Referências:



KEMP, Kênia. Corpo modificado, corpo livre? São Paulo: Paulus, 2005.
SANTAELLA, Lúcia. Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
SANTAELLA, Lúcia. Corpo e comunicação. São Paulo: Paulus, 2004.
SILVA, Amabilis de Jesus. Para evitar o “costume”: figurino-dramaturgia. Dissertação (Mestrado em teatro), Florianópolis: UDESC, 2005.