1 – INTRODUÇÃO
Este texto surgiu do desejo de se pensar a cenografia como um espaço que está constantemente em relação com o espectador e de como essa reflexão pode ser enriquecida a partir dos conceitos de espaço presentes na obra dos artistas brasileiros Lygia Clark e Hélio Oiticica.
Várias outras reflexões a partir da obra de Lígia e Hélio já foram realizadas ao longo da história, dessa maneira, este texto não tem a pretensão do ineditismo ou de trazer questões revolucionárias sobre o pensamento do espaço. Este texto propõe apenas um pensamento analítico, sobre como as considerações desses dois artistas, tão importantes na história das artes visuais, podem influenciar o pensamento da cenografia a partir da sua relação com o espectador.
Um dos assuntos que mais se destacam na cenografia da contemporaneidade é o espaço. Como cenógrafo, para criar qualquer trabalho, torna-se necessário pensar na relação do espaço com o espectador. Mais do que pensar no espaço propriamente dito, o tema que tratamos aqui está justamente na relação entre ele, o espaço, e o espectador. A discussão sobre o espaço na recepção da arte já é bastante antiga na história das artes visuais e também, de certa forma, no teatro.
Nas artes visuais, Marcel Duchamp provoca ao pensar a obra de arte livre do seu suporte e propõe a relação com o espectador a partir da observação do objeto. A arte não estaria nem no sujeito e nem no objeto, mas na relação entre ambos. Além disso, Duchamp também tira o objeto de seu lugar tradicional e, dessa forma, questiona também o espaço físico do museu enquanto lugar. Outros artistas depois dele se aventuram a pensar sobre o lugar. Entre eles estão os brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark.
No teatro, há muito tempo que pensamos o espaço cênico a partir da relação com o espectador. A localização de um lugar específico na sala de apresentação, destinado ao espectador, pode configurar o espaço de várias maneiras diferentes. O espectador pode simplesmente assistir ao espetáculo, como um observador, que vê a cena de um ponto de vista distante, como nos teatros a italiana, por exemplo, onde a plateia está totalmente separada da cena, numa relação frontal. Também podemos pensar num espaço cênico que abrigue o espectador, como idealizava o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, por exemplo. Em ambos os casos, podemos trazer para reflexão os conceitos de Lygia e Hélio, pensando como eles poderão ser ampliados ao planejarmos o espaço que abrigará a cena teatral: a cenografia.
3- A RELAÇÃO ESPACIAL EM HÉLIO OITICICA E LYGIA CLARK
Hélio Oiticica e Lygia Clark, expoentes do experimentalismo nas artes plásticas dos anos 60 e 70 no Brasil, construíram suas carreiras na transição da pintura para o espaço tridimensional. Cada um, a sua maneira, instituiu um cruzamento da vida com a arte e incluiu nas suas experiências a presença ativa do espectador. É nesse sentido que apareceram em suas obras a proposição de uma arte arquitetural.
Hélio Oiticica, entre tantas obras, cria os Penetráveis e propõe com eles uma relação sensível com o espectador. Entrar na sua obra era entrar na própria cor e se relacionar com ela, por exemplo. O espaço nas obras de Hélio está intimamente ligado ao conceito de apropriação. Para ele, se relacionar com o espaço não era apenas uma relação que se dava pela observação, ao contrário, o espaço da obra era para ser penetrado, experimentado pelo espectador, conhecido através da imersão na obra. Esta imersão, além de alterar completamente a relação do sujeito com a obra, abre um leque infinito de possibilidades do que poderá ser a relação sujeito x objeto dali em diante, ampliando consideravelmente a percepção do espaço e de sua abrangência, pois cada experiência será única e a apreensão da obra se completará com as variações de subjetividade.
Hélio propõe novas possibilidades de andar por entre os espaços, novas estruturas em que o público circula e é envolvido. O espectador, transformado pela experiência em sujeito agente, construirá suas percepções subjetivas num tempo determinado e essa relação aproxima-se muito das construções cênicas e espaciais no teatro da contemporaneidade. Ele diz, “o espaço é importantíssimo em concepções arquitetônicas contemporâneas. A arquitetura tende a diluir-se no espaço ao mesmo tempo que o incorpora como um elemento seu” (OITICICA, 1986: 29).
Lygia Clark também, entre outras muitas coisas, instaura a arte relacional ao se denominar uma propositora ao invés de uma artista. Cria máscaras sensoriais e objetos relacionais. O ato do participante, ativo nessa nova área artística que é a própria experiência, altera as variáveis de tempo e espaço, pois essas noções estarão contidas na própria experiência. .A principal diferença entre o que ela propunha e o que Duchamp propôs, estava justamente na relação com o objeto. O objeto em Lygia Clark era apenas uma forma de se relacionar, para criar a arte e não um meio de se chegar à constatação através da observação, como propôs Duchamp. Muito interessante é pensar em como essas relações se desenvolvem no espaço.
Ao incorporar o estado vivencial do participante na obra, o espaço, meramente contemplativo e geométrico, torna-se um espaço circundante e ganha dimensão ontológica. “O espaço arquitetural me subverte. Pintar um quadro ou realizar uma escultura é tão diferente de viver em termos de arquitetura” (CLARK, 1980: 23).
Pensar o espaço nas obras de Lygia é pensar num espaço muito mais interno do que exterior ao corpo do sujeito que apreende a obra. Movimentar sensações internas a partir do contato com a obra é reconfigurar lugares da subjetividade, tão pertencentes à arte e ao teatro contemporâneos.
Muitos diretores, encenadores e outros artistas de teatro também já pensaram na relação com o Espaço. Entre eles está o Antonio Araujo do Teatro Vertigem, que através da Trilogia Bíblica dos anos 90, por exemplo, propôs o espetáculo ocupando os espaços que inicialmente não eram destinados à representação, ou seja, não eram edifícios teatrais. A relação da cena com o público, no Brasil, mudou consideravelmente a partir dessas pesquisas e práticas cênicas. Depois dele vieram vários outros artistas e companhias, dispostos a praticar a relação espacial.
Exercer a cenografia e pensar nas relações com plateia dentro de um espaço cênico específico e dentro daquilo que o espetáculo propõe enquanto escritura cênica é admitir tudo o que já foi pensado sobre o espaço até agora. Hélio Oiticica e Lygia Clark foram dois artistas que contribuíram fortemente para o lugar que buscamos hoje na cenografia; um espaço vivo, habitado pela cena e em constante diálogo com o espectador, aquele que constrói junto o momento presente.
O teatro não pode caminhar isolado das artes visuais, pelo contrario, ele deve abastecer-se delas, na medida em que considera as relações da obra de arte com o espectador. Dessa maneira, ignorar as contribuições de artistas, como Lygia Clark e Hélio Oiticica, para o desenvolvimento de uma poética do espaço é retroceder no pensamento artístico, voltar à uma época em que o público se comportava passivamente nas salas de espetáculo, onde apenas via a cena, por detrás de uma quarta parede imaginária.
5- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CLARK, Lygia. Lygia Clark. Textos de Ferreira Gullar, Mário Pedrosa e Lygia Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980.
FAVARETTO, Celso. A invenção de Helio Oiticica. São Paulo: Edusp, 2000.
FIGUEIREDO, Luciano. Lygia Clark – Hélio Oiticica, cartas 1964-1974. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.