domingo, 31 de agosto de 2008

O ESTUDO DO CORPO BIOCIBERNÉTICO E SUA RELAÇÃO COM A ROUPA/FIGURINO

Prótese mecânica

Paulo Vinícius Alves (Faculdade de Artes do Paraná)[1]

Esta pesquisa tem como objetivo apresentar uma revisão do estudo do corpo biocibernético, a partir das reflexões de Lúcia Santaella, para, num segundo momento, estabelecer um diálogo com as questões da subjetividade contemporânea, tendo como foco a roupa/figurino. Tais reflexões servirão para pensar a cena teatral, de dança e dança-teatro, que tem na dramaturgia corporal o seu principal estopim. Sendo assim, é importante analisar os estímulos e interferências que a roupa/figurino pode causar no corpo, se colocando junto ao processo de criação da cena.
As literaturas mais recentes, sobretudo nas áreas de antropologia, comunicação e sociologia, apontam que quando se pensa em subjetividade subtende-se, na atualidade, pensar no corpo. O rompimento com a dicotomia corpo-mente permite o entendimento de que a subjetividade se manifesta no corpo, ou ainda, é o próprio corpo. No entanto, os corpos modificados pela tecnologia, apresentando novas configurações, tornam-se híbridos, causando convivência entre o natural e o artificial.
É também através do corpo humano que se constrói as ligações e criações com cada área específica das artes. Quando estendermos essa discussão para a questão do figurino, é importante deixar claro o conceito adotado: “O figurino é tudo aquilo que cobre o corpo do ator enquanto este está em cena” (SILVA, 2005: 18). Por isso, a discussão do figurino se juntará às discussões relacionadas ao corpo.


O corpo pós-humano: um corpo em simbiose

O início do século XXI foi marcado pela presença efetiva da tecnologia nas mais diversas expressões artísticas. Por sua vez, o corpo do artista, a ferramenta pela qual se efetiva sua expressão, está totalmente inserido nessas atuais relações e visões da arte contemporânea.
No capítulo oito do seu livro “Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à cibercultura”, Lúcia Santaella nos apresenta algumas definições e classificações do que ela chama de as múltiplas realidades do corpo. Segundo a autora, um corpo biocibernético seria, então, o que hoje pode-se chamar de um corpo que está sujeito às aplicações das novas tecnologias existentes, seja no que diz respeito às questões estéticas, médicas, artísticas ou filosóficas. Dessa forma, o corpo biocibernético pode ser identificado com um corpo que está inteiramente relacionado à combinação homem/máquina. O corpo cibernético sintetiza o corpo que sofreu uma série de mudanças físicas, mentais, sensoriais e cognitivas. Segundo artistas, cientistas, filósofos e demais teóricos envolvidos nos estudos da ciência cognitiva e da inteligência artificial, o corpo humano está passando por profundas transformações principalmente no que diz respeito às aplicações da tecnologia nas mais simples áreas do viver cotidiano dos seres humanos do século XXI.
Diante dessa realidade é importante pensar que existem outras formas de visão do mundo quando se trata de ambientes de realidade virtual ou de vida artificial que estão localizados nessa nova realidade. O corpo que vive nessa nova realidade faz parte de um sistema complexo, com todo seu conjunto de órgãos e células em estados de simbiose com um ecossistema artificial.
Santaella diz que “são muitas as possibilidades que têm surgido de descorporificação, recorporificação e novas expansões não-carnais da mente” (SANTAELLA 2004: 200). As transformações tecnológicas que alteram a realidade do corpo humano, são denominadas por Santaella de múltiplas realidades do corpo. A autora faz uma classificação que considero relevante para a presente pesquisa: o corpo remodelado, o corpo protético, o corpo esquadrinhado, o corpo plugado, o corpo simulado, o corpo digitalizado e o corpo molecular.
O corpo remodelado é o corpo alterado por fatores externos, desde dietas e ginásticas até implantes e cirurgias plásticas. Cabe aqui toda forma de alteração do corpo via processos relativos da tecnologia. Dessa forma, esse corpo transformado, pode ser visto como mercadoria na medida em que sua identidade foi alterada e o critério para se justificar essas mudanças é, muitas vezes, o fator estético.
Sobre o corpo protético, a autora considera o corpo corrigido ou ampliado pela colocação de próteses que vão desde as dentárias ou lentes corretivas para os olhos até implantes de órgãos artificiais. Com relação à esse corpo específico pode-se chamá-lo de híbrido pela discussão daquilo que é tido como natural e artificial. O corpo natural passa a integrar no seu sistema determinada prótese que vem para substituir as faltas que o corpo real apresenta. Entendendo-se por prótese tudo aquilo que é artificial e que foi acoplado no corpo vivo.
Já o corpo esquadrinhado é o corpo sob a vigília de um aparato tecnológico, ou seja, quando um corpo está sendo submetido a exames por aparelhos médicos especiais como no caso das ultra-sonografias , tomografia e ressonâncias magnéticas. O corpo só se realiza como corpo monitorado durante o tempo em que se relaciona e interage com os equipamentos tecnológicos.
O corpo imerso no ciberespaço através da conexão de um computador para entrar em contato com a realidade virtual, é compreendido por Santaella como corpo plugado. Para a autora, um dos níveis se dá pela imersão através de avatares, com o uso de máscaras, por exemplo, que revestem o corpo real para introduzi-lo à realidade virtual, gerando a idéia de persona virtual. Um exemplo atual desse estágio é o Secund Life, um site que promove a existência de um mundo virtual oferecido pela internet onde cada participante escolhe sua persona, ou seja, as características físicas, sociais e psicológicas que quer assumir. Trata-se de um misto de jogo e site de relacionamento, uma “segunda vida”. Outros exemplos de corpo plugado são as imersões por conexão, imersões híbridas, telepresenças e os ambientes virtuais.
Corpo simulado seria uma versão tridimensional do corpo real, construída por algoritmos e tiras de números, ou seja, um corpo totalmente desencarnado. A atual realidade virtual, segundo Santaella, pode simular qualquer coisa desde o sistema hormonal até os rumores do corpo. A existência desse corpo ainda não é inteiramente possível, mas já passível de estudos. Sua materialização se daria enquanto o corpo carnal estivesse plugado, e uma versão tridimensional e virtual desse corpo seria teletransportada para um outro lugar.
Existente já nos processos dos estudos da National Library of Medicine dos USA, o corpo digitalizado é uma representação tridimensional completa e anatomicamente detalhada de um corpo humano, seja homem ou mulher. Primeiramente escaneado por ressonância magnética, depois duplicado numa matriz, posteriormente fatiado, fotografado e catalogado, convertendo-se em arquivo visual digital.
Por último, a autora apresenta o corpo molecular como realidade possível. Trata-se do corpo geneticamente catalogado através do DNA, e depois da descoberta do Genoma esse corpo pode ser levado, em última instância, até a clonagem do corpo humano.

Corpo-subjetividade e corpo-arte


A Subjetividade na atualidade passa por uma crise de ordem conceitual. Para Santaella, o descarnamento da subjetividade promovido pelas atuais tecnologias desestabilizou o processo de construção contínuo da subjetividade que se inaugurou desde Freud. O sujeito está sob interrogação já que o resultado disso tudo é profundamente perturbador.
Paralelamente à essa novas realidades causadas pelo desenvolvimento das tecnologias, pode-se dizer, movidos pelas considerações de Santaella, que esse mesmo corpo humano, que agora se vê híbrido por quase não se constituir mais sem a integração com as tecnologias, desde as mais remotas representações visuais sempre serviu de suporte para a realização da arte.
Mas, conforme esclarece a autora, é a partir do século XX que o corpo do artista ganha novo status: “o corpo do artista passou a ser o sujeito e o objeto do seu trabalho” (SANTAELLA, 2004: 251). Diversas manifestações artísticas, no decorrer da história, apresentaram o corpo como um elemento primordial na construção artística. O corpo passou a ser visto como o suporte, o meio e o próprio fim da arte.
Contudo, nos anos noventa o corpo é abordado, assim como a subjetividade, como “tecnogisados, especificamente inaturais, fundamentalmente infixáveis na sua identidade ou significado subjetivo/objetivo no mundo” (SANTAELLA, 2004: 270). Isto acarreta mudanças na formas de compreensão da arte, estabelecendo-se novos paradigmas.
A relação do corpo com a tecnologia, característica desta passagem do século XX para o século XXI, interferindo nas questões de subjetividade, aos poucos impôs uma redefinição: “pós-humano”. Pensar o corpo na arte, atualmente, significa levar em conta sua simbiose com as tecnologias, formulando uma discussão que vai além da relação do artista com seu corpo, abrangendo também as relações de espaços e, principalmente, as mediações que se estabelecem nas próprias percepções do corpo, intervindo no sentir.

A relação do Corpo Biocibernético com a Roupa/figurino


Podendo ser entendida como uma máscara pessoal, no dia-a-dia, pois pode esconder ou salientar o corpo, descrever a personalidade e o estilo de quem a usa, a roupa já foi objeto de estudos de muitos autores de diversas áreas do conhecimento. Em “Psicologia do vestir”, Umberto Eco, Renato Sigurtá e Gillo Dorfles, só para citar alguns, já na década de 1970 apontavam a importância da roupa como meio de comunicação.
Quando a roupa é levada ao palco, tornando-se figurino potencializa ainda mais sua capacidade de expressão. Um figurino, então, possui significados intrínsecos que, em cena, podem contribuir acrescentando dados ao espetáculo, ou, ao contrário, colocar em risco a idéia geral da encenação.
Para a semiótica, que estuda as linguagens verbais e não-verbais, tudo o que produz significados estabelece uma comunicação entre os seres humanos, sendo assim, não depende-se somente do texto verbal para se passar uma mensagem, pois a linguagem também está contida nos mais diversos recursos usados na linguagem teatral. Neste sentido, o figurino pode assumir papéis tão importantes quanto o papel assumido pelo ator ou pelos demais elementos. A capacidade de comunicação visual é um dado já aceito há tempos, assim como é de grande valia para o teatro.
Porém, o figurino, na grande maioria das vezes, assume o papel de indicador das subjetividades do personagem, através da apresentação de dados como: idade, sexo, status e outros.
Na medida em que se constatam as modificações encontradas no corpo humano, cada vez mais comuns, e muitas delas sendo feitas através da roupa, é importante repensar a forma de criação dos figurinos para a cena. Santaella se refere a vários artistas que já incluíram em seus processos de criação questões que possam dialogar com a idéia de corpo biocibernético, trazendo novos meios de comunicação.
Sobre a utilização do figurino como forma de expressão, como indicação das transformações ocorridas no corpo, como materialização da subjetividade e introduzido no processo de criação da cena, cito as experiências ocorridas no ano de 2006, na Faculdade de Artes do Paraná, nos cursos de Interpretação e Direção. Partindo da idéia de processo colaborativo, o Prof. Ms. Giancarlo Martins e a Profa. Ms. Amabilis de Jesus propuseram uma atividade em conjunto, unindo as disciplinas de Composição Coreográfica I e Indumentária, com a intenção de gerar uma vivência das possibilidades oferecidas pelo figurino no contato com o corpo. Inicialmente, os estudos dirigiam-se às pesquisas que tratam da dramaturgia corporal. Depois, diante da constatação da relação profunda entre o corpo e o figurino, as propostas foram delineando-se até chegar no figurino como modificador do corpo, ou extensão do corpo. Com o andamento da proposta passou-se a discutir as relações do corpo com o figurino, entendo que nesta situação o figurino oferecia outras oportunidades de percepções para o corpo. Também, buscava-se o corpo em estado de presentificação. Ou seja, as reações do corpo a partir das sensações causadas pelo figurino eram levadas em consideração, entendendo-as como ações. O uso dos materiais foi bastante diversificado e gerou um diálogo com os estudos do corpo biocibernético, uma vez que pôs em contato o corpo natural com a artificialidade dos materiais, misturando orgânico e inorgânico.
Enfim, os estudos do corpo biocibenético parecem ser uma tendência cada vez mais aproximada da prática teatral, da dança e da dança-teatro. Estes estudos trazem novos procedimentos e novas formas de percepção da arte e do mundo.


Referências Bibliográficas

ECO, Umberto (et al). Psicologia do vestir. Trad. José Colaço. Lisboa: Assírio e Alvim,
1989.
SANTAELLA L. Culturas e artes do pós-humano: Da Cultura das mídias à cibercultura.
São Paulo: Paulus, 2004.
SANTAELLA L. O que é semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1983.
SILVA, Amabilis de Jesus. Para evitar o “costume”: figurino-dramaturgia. Dissertação
(Mestrado em Teatro). Florianópolis: Udesc, 2005.


[1] O presente artigo é parte do meu processo de pesquisa no Programa de Iniciação Científica Voluntária em Artes Cênicas da FAP, sob orientação da Profa. Ms. Amabilis de Jesus da Silva.

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