segunda-feira, 20 de julho de 2020

ENCADERNO de Paulo Vinícius no Boca Malditas


Hoje foi publicado ENCADERNO, meu Caderno de Artista no site Bocas Malditas (Cena, Crítica e Contexto). Trata-se do registro autobiográfico de uma produção artística fragmentada, realizada durante o segundo semestre de 2019, com trabalhos executados em parceria com diferentes diretores e companhias de teatro. A publicação foi gentilmente foto ilustrada por Lauro Borges e cita vários artistas importantes da cena curitibana e brasileira. Além das fotografias processuais, a publicação traz notas de trabalho, registros do percurso de um artista que começou no teatro, atravessou por diferentes áreas afins e voltou para a arte da cena através, primeiramente, das tecnologias visuais.
O site Bocas Malditas é uma importante publicação do Paraná que, além dos Cadernos de Artistas, publica críticas e opiniões a respeito da produção teatral e artistas paranaenses e nacionais. Entre os principais autores e colaboradores estão os artistas Francisco Mallmann. Henrique Saidel e Luana Navarro.
O endereço da publicação é: http://bocasmalditas.com.br/encaderno/
Sejam bem vindos!


domingo, 10 de maio de 2020

CORPO E ESPAÇO EM MERLEAU-PONTY: UMA INTRODUÇÃO

Paulo Vinícius Alves
Este texto foi escrito durante a minha pesquisa de Mestrado em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná 


O presente texto veio para esclarecer o entendimento de Merleau-Ponty sobre o Corpo e o Espaço, dois conceitos muito importantes do filósofo, para o desenvolvimento e entendimento da minha pesquisa no Mestrado em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná / PUCPR. Para tanto, fez-se necessário a abordagem prévia de como Ponty entende a Fenomenologia e como propõe o conceito de percepção.
Em Fenomenologia da Percepção (1945)[1], Merleau-Ponty traz o corpo para o primeiro plano de reflexão, revelando o modo pelo qual o homem conhece o mundo e a si mesmo. Trata-se de uma relação, ou seja, a percepção não está apenas na oconsciência do sujeito (abordagem intelectualista) e nem tão pouco apenas no objeto observado (abordagem empirista). Neste sentido, a concepção fenomenológica da intencionalidade[2] indica que o sentido da percepção não está em um dos polos isoladamente, mas na relação que se estrutura entre eles. Esta relação, como demonstra Merleau-Ponty, é mediada pelo corpo do sujeito, pois, “o corpo é nosso meio geral de ter um mundo” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 203).
A percepção, tal como Merleau-Ponty conceitua, é de extrema importância para esta pesquisa na medida em que “a percepção não é aquilo que pensamos, mas aquilo que vivemos, uma vez que estamos abertos ao mundo e comunicamo-nos indubitavelmente com ele pelo nosso corpo” (GOLÇALVES; SILVA; CARDOS; BERESFORD, 2010, p. 82). Dessa maneira, toda experiência é vivida sob o pano de fundo do mundo e, nesse sentido, existe muitas interpretações sobre este mundo, espaço pelo qual cada sujeito vivencia suas relações de aprendizagem e formulações de conceitos a partir daquilo que já existia no mundo; lugares e objetos. O mundo, portanto, é o lugar do encontro, onde o sujeito reencontra os objetos que construíram o seu próprio mundo.
A filosofia de Merleau-Ponty pode ser considerada como uma reflexão sobre a experiência humana, sobre o corpo, a percepção, o mundo, a consciência e a subjetividade. Os comentadores trazidos para esta pesquisa darão o suporte necessário para o esclarecimento das proposições de Merleau-Ponty, como, por exemplo, o entendimento do corpo como referencia espacial:

O corpo é a principal referência espacial e o espaço deve ser compreendido não só a partir dele, mas também como uma extensão do próprio corpo, em uma compreensão femenológica, apoiada na experiência corporal e vivencial. Trata-se de ver o espaço como um estado de uma situação em constante mudança, na qual o indivíduo sabe onde está seu corpo e as partes que o compõem, por um saber absoluto (GOLÇALVES; SILVA; CARLOS; BERESFORD, 2010, p. 83).

Para ele, a fenomenologia enquanto método segue as mesmas características da filosofia, ou seja, busca definir a essência das coisas. Porém, além do sentido essencialista, a fenomenologia, recoloca a essência na existência, pois só neste campo as coisas poderão existir tais como elas são, isto é, na medida em que eu me deparo com os fenômenos do mundo e isto só é possível enquanto existência. Neste sentido,

Merleau-Ponty afirma que a experiência do sujeito é um campo aberto a possibilidades, pois o corpo próprio tem consciência de si mesmo, não como consciência pura, mas como experiência, e habitando o espaço, experimentando sua própria existência, é capaz de perceber o mundo através de perspectivas (FIGUEIREDO, 2015, p. 12)

A abordagem de Merleau-Ponty para a Fenomenologia insere-se num lugar diferente da concepção científica, onde a identificação da realidade era feita pelos objetos construídos pela ciência, caindo no objetivismo. Nesse sentido,

a ciência manipula as coisas e renuncia habitá-las. Estabelece modelos internos delas e, operando sobre esses índices ou variáveis as transformações permitidas por sua definição, só de longe se confronta com o mundo real (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 15).

            O sujeito vive o seu próprio mundo, deve ser fonte absoluta de seus próprios movimentos e pensamentos. A experiência não é proveniente dos seus antecessores, não decorre de uma experiência anterior ou de outro ser humano que perceba, isto é, o sujeito é quem escolhe os horizontes da sua própria experiência. A ciência, para Merleau-Ponty, seria uma criação humana, não podendo ser a única forma de pensar a existência do mundo e a nossa própria existência. Portanto, a “maneira mais fundamental de compreender a nós mesmos não pode ser a maneira objetiva da ciência: como um tipo especifico de objeto no mundo a ser explicado de fora” (MATTHEWS, 2010, p. 26).
A abordagem de Merleau-Ponty para a Fenomenologia também insere-se num lugar diferente da concepção clássica filosófica, que identificava a realidade com as ideias postas pelo sujeito do conhecimento, resultando, portanto, no subjetivismo. Merleau-Ponty disse que não somos uma consciência cognitiva pura, pois, nós, seres humanos, somos uma consciência encarnada num corpo. Portanto, nosso corpo humano não é apenas algo físico e mecânico como descrito pela ciência. Temos um corpo que é habitado e animado por uma consciência. O sujeito é algo entre um corpo e uma consciência. Para Merleau-Ponty somos seres temporais, porque nascemos e temos consciência do nascimento e da morte. Temos consciência da história e fazemos a história, neste sentido somos tempo, pois, o tempo existe porque nós existimos. O sujeito também é um ser espacial, pois para nós o mundo é feito de lugares e de distâncias. O corpo do ser humano é uma coisa entre outras coisas, um ser visível e vidente, porque somos vistos e também podemos ver, podemos, sobretudo, “nos ver e nos ver vendo e, neste sentido há uma interioridade na visão”. O corpo humano é um ser tátil, podemos ser tocados, tocar e ser tocados. O corpo humano é som, sonoro, “podemos ser ouvidos e também podemos ouvir e ouvir-nos, neste sentido, sonoros para nós mesmos”. O corpo humano é móvel e também é movente, podemos mover-nos. O corpo humano é uma coisa sensível e também sensível para nós mesmos (CHAUÍ, 2011).
A Fenomenologia é, portanto, diante dessa nossa relação com o mundo, uma habilidade de descrever o mundo, pois, o sujeito que o percebe pode fazer descrições dos fenômenos tais como ele mesmo o percebe, como ele sente, reconhecendo, assim, sua própria existência, enquanto ser que vive com outros seres no mundo, em relações constantes através dos sentidos.

Os sentidos abarcam aquilo que o fenômeno é, porém, é a capacidade de significação do sujeito que o faz ganhar formas, no sentido de ser percebido por perspectivas. O ser presente na questão é o corpo próprio na condição de sujeito subjetivo. O ser está relacionado com o próprio sujeito que percebe. A percepçãose torna uma experiência original, pois é através dela que as coisas são manifestadas no seu sentido primitivo, ou seja, o corpo próprio se depara com o mundo e tudo quanto há nele percebendo-o, esta primeira análise é o que se conhece como experiência original (FIGUEIREDO, 2015, p. 60).

Em Merleau-Ponty, a estratégia de voltar às coisas mesmas é o que se conhece como redução fenomenológica[3]. Porém, para ele, mesmo através da redução, não seria possível conhecer as coisas de uma forma universal (olhar de sobrevoo), seria necessário percebe-las por partes, ou seja, é através da volta às coisas mesmas que podemos compreender melhor os seus significados, pois, “o inacabamento da fenomenologia e o seu andar incoativo não são o signo de um fracasso, eles eram inevitáveis, porque a fenomenologia tem como tarefa revelar o mistério do mundo e o mistério da razão” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 20).
            Em a Femenologia da percepção, Merleau-Ponty reflete sobre a percepção, tendo como sujeito o próprio corpo e a consciência perceptiva. Nesse sentido, “o corpo próprio comporta-se como sujeito; é sujeito-corpo. A consciência, por sua vez, é sujeito de percepção, visto que toda consciência encarnada é, em algum grau, consciência perceptiva” (SOMBRA, 2006, p. 19). Entre muitos desdobramentos, o que é discutido nessa obra é que a consciência perceptiva nos dá um corpo, como corpo próprio, um corpo que é vivido. Portanto, “é a partir da percepção, como uma dialética viva de um corpo ou organismo com seu meio, que devemos conceber a estrutura da consciência presente na ambiguidade e no enigma do próprio corpo” (SOMBRA, p. 114).
Entre tantas proposições importantes na Femenologia, destacamos a análise de Leandro Neves Cardin:

Merleau-Ponty, por sua vez, vai retomar a discussão da relação da alma e do corpo aberta por Descartes, mas fará isso a partir de uma problemática relativamente deslocada. Para ele o que está em questão é o problema da relação entre o fisiológico e o psicológico. Onde estaria o ponto comum no qual ambos se encontram? Para o filósofo, o que pode efetuar a junção entre o fisiológico e o psicológico é a existência. Não o corpo objeto (Köper), mas o corpo que é o meu corpo pessoal (Leib). Sendo assim, é uma ambição de nossa época superar a tradicional dicotomia estabelecida pelo dualismo substancial de estilo cartesiano. Na verdade, o filósofo pretende avançar a interpretação do “nosso século” como aquele que superou a antítese entre o materialismo e o espiritualismo. “Nosso século apagou a linha divisória entre o „corpo‟ e o „espírito‟ e vê a vida humana como espiritual e corporal de parte a parte, sempre apoiada no corpo, sempre associada, até nos seus modos mais carnais, às relações entre as pessoas” (CARDIM, 2007, p. 23).

Nesse sentido, a Femenologia da percepção configura-se como a principal base de investigação para o desenvolvimento dessa pesquisa, uma vez que:

Esta obra tem muito a contribuir nesse sentido, pois aborda o corpo fenomenal, contrapondo-se ao pensamento científico clássico que vê o corpo como objeto. Nela o corpo aparece como nosso modo próprio de se-no-mundo, levando-nos a repensar a subjetividade em sua corporeidade, através de argumentos que sustentem a idéia de que não tenho um corpo, o corpo não é a morada do sujeito, não é algo que posso me despir, me desvencilhar, mas sou o meu corpo” (GOLÇALVES; SILVA; CARDOS; BERESFORD, 2010,p. 83).

        Na concepção fenomenológica da percepção a apreensão dos sentidos se faz pelo corpo, tratando-se de uma expressão criadora, a partir dos diferentes olhares sobre o mundo. Não é um olhar sobre algo, racional apenas, mas um olhar que também é afetado por aquilo que se vê, dessa maneira, o conhecimento se dá no encontro. Porém, o sujeito também não consegue perceber tudo ao mesmo tempo, ou ter a apreensão completa de um objeto, sempre existe um lado que se torna desconhecido pelo sujeito da percepção. O sujeito pode perceber apenas aquilo que se mostra, os fenômenos que aparecem como algo diante do corpo próprio, e a parte que não é mostrada, que está obscura, pode ser um impulso para o sujeito ir até as coisas, por exemplo.

          Dizer que tenho um campo visual é dizer que, por acasião, tenho acesso e abertura a um sistema de seres, os seres visuais, que eles estão à disposição de meu olhar em virtude de uma espécie de contrato primordial e por um dom na natureza, sem nenhum esforço de minha parte; é dizer, portanto, que a visão é pré-pessoal; e é dizer, ao mesmo tempo, que ela é sempre limitada, que existe sempre em torno de minha visão atual um horizonte de coisas não-vistas ou mesmo não-visíveis. A visão é um pensamaneto sujeito a um certo campo e é isso que chamamos de um sentido (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 292).

        Numa visão tradicional da filosofia, a percepção era justificada como uma abordagem intelectualista, considerando que o sentido do percebido está na consciência do sujeito, isto é, o sentido não está no objeto. Contudo, na concepção fenomenológica da percepção considera-se que o sentido não se encontra em nenhum dos pólos considerados isoladamente, mas surge da relação que se estabelece entre eles.

        Sobre a comunicação do corpo com o mundo, Merleau-Ponty afirma radicalmente na Fenomenologia da percepção que o nosso corpo não está no espaço: ele é o espaço.
               A corporeidade pode ser sinônimo de “corpo-vivido” e, neste sentido, refere-se a um corpo sempre em movimento, que se articula e se relaciona entre os outros corpos e os demais objetos do mundo. O “ser-em-movimento” é o “ser-no-mundo” e possibilita o corpo mover-se até um objeto, olhá-lo, cincundá-lo e conhecê-lo sob outros aspectos. Neste sentido, mover-se é sair de si para ser-com, tornando-se sensível ao outro, pois “a consciência é o ser para a coisa por intermédio do corpo (...) e mover seu corpo é visar as coisas através dele, é deixa-lo corresponder à sua solicitação, que se exerce sobre ele sem nenhuma representação” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 193). Portanto, o movimento do corpo desempenha um papel importante na percepção do mundo, como uma maneira de se relacionar ao objeto, distinta da teoria do conhecimento tradicional.
          O corpo próprio é mostrado por Merleau-Ponty como um corpo que habita um mundo fenomênico e não geográfico. Ele está localizado num mundo vivido, porque é ressignificando e transformado pelo sujeito. Desta maneira, o corpo próprio não está apenas localizado em um espaço, mas, ele constrói o próprio espaço habitando-o, buscando situar-se intencionalmente no espaço habitado. “O corpo é nosso meio geral de ter um mundo” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 203).
Contrariarando as ideias cartesianas de um espaço geométrico, Ponty vai diz;

O espaço não é mais aquele falado na Dioptrique, rede de relações entre os objetos, tal como veria uma terceira testemunha de minha visão ou um geômetra que o reconstruiu e o sobrevoa, é um espaço contado a partir de mim como ponto ou grau zero de espacialidade. Eu não o vejo segundo o seu envoltório exterior, eu o vejo de dentro, eu estou englobado nele. Afinal, o mundo está em volta de mim e não diante de mim (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 59).

            Portanto, a percepção, nesse sentido é ter o mundo através do corpo e o corpo através do mundo, nossa abertura ao mundo se faz pela carne, assim como o mundo se abre a nós pela carne.
Merleau-Ponty apresenta a espacialidade sob duas perspectivas: o espaço posicionado e o espaço situado. O primeiro tem a ver com a posição e a localização dos objetos que estão no mundo, compreendidos como coisas, que só ganham sentido quando há um sujeito que as percebe. O espaço de posição tem a ver com a geografia do mundo. Já o segundo espaço, o de situação, aborda uma compreensão onde o sujeito não está apenas inserido no espaço, mas vive esta relação, experimentando a realação om os objetos, percebendo o mundo e resinificando-o. Vamos falar um pouco mais sobre essas duas perpectivas da espacialidade.
              A espacialidade de posição é o que se compreende por espaço geográfico, como dissemos. É o lugar onde o sujeito terá suas experiências concretas, onde perceberá o espaço através de suas distâncias, por exemplo, de suas aproximações ou afastamentos. É uma espacialidade onde os objetos podem ser descritos pelo sujeito através de dados visuais, mensuráveis, pois, “o espaço não é o ambiente (real ou lógico) nem que as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 328). Assim, o espaço de posição é um lugar onde objetos são organizados, ocupando um lugar físico, como uma construção civil num terreno específico, por exemplo.
         A espacialidade de situação é referente ao corpo que, como sistema de ações, vive uma experiência perceptível e, dessa maneira, é uma espacialidade que nunca deixa de estar em relação a quem percebe, isto é,

Enquanto no espaço de posição, o sujeito pode delimitar esquemas para direciconar localizações, na espacialidade de situação o sujeito não tem como meta definir localizações, pois ele mesmo habita o espaço em que está inserido; ele não é um objeto que se pode ser colocado em algum lugar da superfície terrestre. O corpo próprio é que define sua situação, é ele que modifica e ressignifica todo o espaço situado porque, estando nele, habita-o. (FIGUEIREDO, 2015, p. 70)

            A compreensão da espacialidade de situação ocorre através do processo de intencionalidade, porque os movimentos físicos realizados pelo corpo, como caminhar, por exemplo, se dão no espaço de posição, enquanto todo movimento intencional se dá no espaço situado. Esse movimento, ao qual Merleau-Ponty chama de motricidade é a possibilidade para se entender a distinção do movimento mecânico. A relação do sujeito e a coisa pode ser compreendida como uma experiência vivida.
                       
Trata-se de um novo modo de compreender o espaço, não como um lugar, mas como vivência e, assim, Merleau-Ponty não aborda a noção de espaço como não tendo um em si, como pensa a tradição, e nem o para si como uma mera forma da sensibilidade. O mundo não se resume a um determinado lugar em que os objetos são colocados ocupando espaço físico, o filósofo retrata o mundo como um espaço de situação, em que o sujeito habita e não apenas está posicionado, o espaço é vivido. É o sujeito que compreende, dá sentido e se envolve com ele. (FIGUEIREDO, 2015, p. 65)

             A motricidade seria uma intencionalidade original, sendo a consciência em Merleau-Ponty um “eu posso”, ao invéis de um “eu penso” como em Descartes. É através do “eu posso” que se torna possível falar em uma subjetividade estabelecida na capacidade de sentir e de se movimentar. A motricidade do corpo próprio é a intencionalidade e, dessa maneira, “o movimento não é o pensamento de um movimento, e o espaço corporal não é um espaço pensado ou representado” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 192).
           Não é a representação de um pensamento que impulsiona o movimento que será realizado, mas a intenção que o sujeito tem de chegar até um objeto, fora de si, exterior. O espaço corporal não é pensado ou representado, mas sim um espaço vivido, experienciado, pois, o movimento também não consiste em ser pensado e sim experienciado. O espaço não é um espaço vazio, mas habitado por coisas e a relação do sujeito com essas coisas vai ser determinada pelo próprio movimento.

A motricidade não é como uma serva da consciência, que transborda o corpo ao ponto do espaço que nós previamente nos representamos. Para que possamos mover nosso corpo em direção a um objeto, primeiramente é preciso que o objeto exista para ele, é preciso então que o nosso corpo não pertença à região do “em si” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.193).

              O corpo particular do sujeito não é um objeto como qualquer outro do mundo, ele se destaca por ser um sujeito sensível, que percebe e está em relação com os outros objetos, estando, portanto, situado no espaço. Merleau-Ponty disse que o sujeito é aquele que percebe e o objeto é aquele que é percebido. Nesse sentido, um sujeito pode ser um objeto para outro sujeito que o percebe. Porém o sujeito que percebe, diferencia-se dos objetos físicos por ser capaz de compreender sua própria existência.

Ora, para que o objeto possa existir em relação ao sujeito, não basta que este sujeito o envolva com o olhar ou o apreenda assim como minha mão apreende esse pedaço da madeira, é preciso ainda que ele saiba que o apreende ou o olha, que ele se conheça apreendendo ou olhando, que seu ato seja inteiramente dado a sí mesmo e que, enfim, este sujeito seja somente aquilo que ele tem consciência de ser, sem o que nós teríamos uma apreensão do objeto ou um olhar o objeto para um terceiro testemunho, mas o pretenso sujeito, por não ter consciência de si, se dispersaria em seu ato e não teria consciência de nada (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 318).

             Pensar o espaço, em Merleau-Ponty, é entendê-lo como resultado de uma interação do corpo com o mundo. O corpo e o mundo formam um sistema dinâmico. O mundo se torna mundo na medida em que há um sujeito que o percebe e o corpo só se faz corpo pela experiência de estar no mundo. Estando inserido e fazendo parte do espaço, o corpo experimenta uma espacialidade constituída entre ele e as coisas, enquanto presença do mundo percebida. Dessa maneira, “habitando o espaço, o corpo impõe a condição de uma realidade para si e, assim, o espaço deixa de ser algo exterior porque é vivido. Aquilo que é percebido ganha um sentido novo através da situação em que se revela” (FIGUEIREDO, 2015, p. 73).
          Segundo Marilena Chauí, o conceito de experiência, por sua vez, pode ser entendido em Merleau-Ponty como o ponto máximo de proximidade e distância, de pluralidade e unidade, de inerência e diferenciação “em que o Mesmo se faz outro no interior de si mesmo” (CHAUI,1994, p. 474).
            A experiência é a maneira como vemos e como reagimos ao que vemos, ou seja, a experiência da visão, o ato de ver. A experiência é a maneira como falamos sobre aquilo que queremos falar, ou seja, a experiência da linguagem. Em qualquer uma das possibilidades, a experiência é sempre um evento que se dá com o exterior do sujeito, resultando interpretações e análises subjetivas, mas, é sempre no encontro com o outro que se torna possível o ato de experenciar.

A experiência é diferenciadora: vidente-visível, tocante-tocado, falante-falado, pensante-pensado são diferentes, assim como ver é diferente de tocar, ambos são diferentes de falar e pensar, falar é diferente de ver e pensar; pensar, diferente de ver, tocar ou falar. Abolir essas diferenças seria regressar à Subjetividade como consciência representadora que reduz todos os termos à homogeneidade de representações claras e distintas. Porém, a diferenciação própria da experiência não é posta por ela: manifesta-se nela porque é o próprio mundo que se põe a si mesmo como visível-invisível, divisível-indivizível, pensável-impensável. No entanto, a cisão dos termos só é possível porque o mundo como Carne é a coesão interna, a indivisão que sustenta os diferentes como dimensões simultâneas do mesmo Ser. O mundo é simultaneidade de dimensões diferenciadas ou, como escreve Merleau-Ponty, o Ser Vertical cujas raízes estão desnudadas (CHAUÍ, 1994, p. 475).

         A experiência do mundo vivenciada pelo corpo é fundamental para o processo do conhecimento, é no corpo próprio do sujeito que se localizam todos os poderes perceptivos, todos os objetos do mundo se tornam prolongamento do corpo, através da percepção que é fundada no corpo próprio. O sujeito apresenta a centralidade do corpo como principal viés para o conhecimento e, consequentemente, para a experiência do mundo. Essa constatação indica a aceitação de um mundo fenomênico que emerge do meu contato com o outro.
                 O espaço pode propiciar, mediante a sua formulação, experiências possíveis de resgate das sensações vividas por nós em diferentes momentos da trajetória do nosso ser. Relacionamos-nos espacialmente na medida em que vemos, tocamos, cheiramos os objetos e lugares do mundo. As estruturas espaciais são, ao mesmo tempo, um estado (provisório) e é o objeto de um movimento que modifica seu conteúdo (permanente).

Meu corpo é o lugar, ou antes a atualidade mesmo do fenômeno de expressão (Ausdruck), nele a experiência visual e a experiência auditiva, por exemplo, são pregnantes uma da outra, e seu valor expressivo funda a unidade antepredicativa do mundo percebido, e, por ela, a expressão verbal (Darstellung) e a significação intelectual (Bedeutung). Meu corpo é a textura comum de todos os objetos e ele é, ao menos em vista do mundo percebido, o instrumento geral da minha "compreensão" (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 271-272).

                 Dessa maneira, o conhecimento do espaço, portanto, não poderá constituir-se sem uma base filosófica.
                 A corporeidade, “o fato de ser incorporado significa que viver no mundo vem antes do pensamento consciente sobre o mundo: a experiência básica é pré-reflexiva, a reflexão diz respeito ao que é pre-refexivamente dado” (MATTHEWS, 2010, p. 76).
Por isso, a percepção, como Merleau-Ponty conceitua, é quem vai operar na relação corpo x espaço, pois:

No ato de construir o espaço, a percepção e a consciência são condições indispensáveis porque o espaço, e mesmo uma direção nele traçada, só pode existir para um sujeito que a traça. Porém, no ato da percepção é preciso fragmentar esse espaço para perceber e constituir com os sentidos – visão, audição, olfato, paladar, tato. Em especial o olhar, que como uma espécie de “faróis a iluminar”, uma máquina de conhecer, aprende as coisas por onde elas devem ser apreendidas para se tornarem espetáculo (GOLÇALVES; SILVA; CARDOS; BERESFORD, 2010, p. 83).

            A filosofia é a base para a presente pesquisa. As artes, por sua vez, diante de tais constatações, contribuem com importantes ensinamentos para o desenvolvimento filosófico, pois:

O pensamento não pode fixar-se num polo (coisa ou consciência, sujeito ou objeto, visível ou vidente, visível ou invisível, palavra ou silêncio), mas precisa sempre mover-se no entre-dois, sendo mais importante o mover-se do que o entre-dois, pois entre-dois poderia fazer supor dois termos positivos separáveis, enquanto o mover-se revela que a experiência e o pensamento são passagem de um termo por dentro do outro, passando pelos poros do outro, cada qual reenviando ao outro, sem cessar. Eis por que as artes ensinam à filosofia a impossibilidade de um pensamento de sobrevoo que veria tudo de uma só vez, veria cada coisa em seu lugar e com sua identidade, veria redes causais completas, veria todas as relações possíveis entre as coisas, como o olhar do Deus do Leibniz, geometral de todos os pontos de vista. Merleau-Ponty insiste em que o artista ensina ao filósofo o que é existir como um humano (CHAUÍ, p. 475).

          Retomando as questões expostas até aqui, podemos dizer que a grande contribuição de Merleau-Ponty na filosofia foi inserir o homem, por meio da percepção, da experiência, da sensibilidade no centro de uma contradição clássica, tornando o corpo perceptivo como um mediador de antinomias como sujeito e objeto ou o tempo e o espaço.
              Toda experiência corporal é uma experiência espacial e o nosso corpo é o meio geral de ter um mundo, como disse o filósofo (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 193). Nosso corpo existe no espaço e no tempo, nossa presença no mundo se efetiva a partir dos nossos corpos. Se percebemos com o corpo, então o corpo é o sujeito da percepção.
              Transpor a maneira fenomenológica de conhecer o mundo para a relação espetacular que se dá no espaço cênico teatral foi a abordagem principal que minha pesquisa tratou, nesse sentido, o presente estudo foi a mola propulsora dos desdobramentos que se efetivaram na interface entre teatro e filosofia.
           

REFERÊNCIAS

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BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Os Pensadores XXXVIII.  São Paulo: Abril Cultural, 1974.
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CARDIN, Leandro Neves. A ambiguidade na Femenologia da percepção de Maurice Merleau-Ponty. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2007. Disponível em: . Acesso em 10/10/2016
CHAUI, Marilena. Merleau-Ponty: obra de arte e filosofia. Artepensamento. Organização de Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CHAUI, Marilena. Experiência do Pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 
CHAUI, Marilena. O espaço, o tempo e o mundo virtual. Vídeo registro da palestra ministrada no evento CPFL Cultura. São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=X5d1TBpXrq0 Acesso em 10/10/2017.
FALABRETTI, Ericson. Kant e Merleau-Ponty: Passagens sobre o espaço. Artigo publicado na revista internacional de filosofia Kant e-Prints. Campinas, série 2, v. 4, n. 1, pág 165-183, 2009. Disponível em: Acesso em 05/04/2017
FAZIO, Caterina Di. The free body Notes on Maurice Merleau-Ponty's phenomenology of movemen. Disponível em: Acesso em 01/04/2017
FIGUEIREDO, Jadismar de lima. Corpo próprio, especialidade e mundo percebido em Merleau-ponty. 2015. 130 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2015. Disponível em: http://tede.biblioteca.ufpb.br:8080/handle/tede/8345
GOLÇALVES, Rosãngela; SILVA, Iris Lima e; CARDOSO, Fabrício; BERESFORD, Heron. O valor da percepção do corpo para o conhecimento do espaço cênico: uma contribuição para a preparação vocal de atores de teatro baseada no pensamento de merleau-Ponty. Revista Repertório Teatro e Dança - Ano 13 - Número 14 - 2010. Disponível em Acesso em 15/03/2017.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Tradução de Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2010.
HANSEN, Gilvan Luiz. Espaço, tempo e modernidade. Conferência apresentada pelo autor, em 29/05/2000, no Curso de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Disponível em . Acesso em: 31/08/2016.
LEBRUN, Gérard. Sobre Kant. Tradução de José Oscar Almeida Moraes; Maria Regina Avelar Coelho da Rocha: Rubens Torres Filho. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Iluminuras, 1993.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
LIMA, Evelyn Furquim Werneck; CALDEIRA, Solange Pimentel. O espaço teatral, o corpo e a memória. O Percevejo on line. Disponível em: Acesso em 13/08/2016. 
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NÓBREGA, Terezinha Petrucia da. Corpo, percepção e conhecimento em Merleau-Ponty. Estudos de psicologia. Campinas, v.13, n.02, p.141-148, ago. 2008. Disponível em: . Acesso em: 26 out. 2016.
REIS, Alice Casanova dos Reis. A SUBJETIVIDADE COMO CORPOREIDADE: o corpo na femenologia de Merleau-Ponty. Revista Vivência vol 37, 2011. Disponível em Acesso em 20/03/2017
ROUBINE, Jean Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
SANTOS, Milton. O espaço geográfico como categoria filosófica. Terra Livre, São Paulo, n. 5, p. 9-20 1988. Disponível em . Acesso em: 30/08/2016.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo. São Paulo: EDUSP, 2002.
SOMBRA, José de Carvalho. A subjetividade corpórea: a naturalização da subjetividade na filosofia de Merlau-Ponty.  São Paulo: Ed Unesp, 2006.
SOUZA, Maurini de: ALVES, Paulo Vinícius. A escritura cenográfica no trabalho de Fernando Marés. Revista Repertório Teatro e Dança. Disponível em . Acesso em 04/10/2016.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perpectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel, 2013.




[1] A obra Fenomenologia da Percepção foi escrita em 1945 e é o segundo livro de Maurice Merleau-Ponty. É a sua obra mais conhecida e mais estudada em todo o mundo. Juntamente com seu primeiro livro, A Estrutura do Comportamento, escrita em 1942, Ponty forma uma obra que se completam do ponto de vista de uma filosofia do corpo. Em termos bastantes simples, A Fenomenologia da Percepção trata da experiência que nós mesmos vivemos, a experiência da percepção, do homem como ser-no-mundo (CHAUÍ, 2002, p. 35).
[2] Merleau-Ponty reformula a noção de intencionalidade, sustentada por Hussel, como uma abertura de um campo de possibilidades para um sujeito situado. A compreensão de intencionalidade se dá não no campo dos pensamentos, mas na capacidade perceptiva do sujeito, pois a experiência do corpo no mundo pode ser traduzida como a experiência do corpo no espaço. Por intencionalidade pode-se entender a capacidade do homem de ligar, numa totalidade de significação, o conjunto àquilo que está presente. Isto implica o sentido de criar uma forma de compreensão diferente para o mundo através de outras consciências que habitam e testemunham este mundo (FIGUEIREDO, 2015, p. 42).
[3] Por redução fenomenológica, Merleau-Ponty compreende algo que não desemboca em um puro transcendental, mas nos faz reconhecer, nesse transcendental mesmo, a presença inegável da facticidade e da existência. A redução revela o paradoxo de uma relação de ser que põem em questão as categorias clássicas, recusando formulações excludentes, não sendo nem puro sujeito e nem puro objeto, mas a articulação orgânica e livre deles (FIGUEIREDO, 2015, p. 20).


sexta-feira, 8 de maio de 2020

Breve histórico do espaço cênico no século XX


Paulo Vinícius Alves
Este texto foi escrito durante a pesquisa de Mestrado em Filosofia da PUCPR
que teve como objeto de estudo a expansão do conceito de espaço cênico.

           
        Este texto tem como objetivo principal traçar um panorama do uso do espaço cênico teatral sobre o decorrer do século XX, principalmente valorizando o desenvolvimento histórico e do espaço físico como lugar de relação entre cena e espectador. Tem como mola propulsora o desejo de se tornar uma fonte de pesquisa sobre a cenografia[1], oferecendo um mapeamento do espaço cênico, do naturalismo cênico (final do século XIX) até o momento atual, ano de 2018. Contudo, não pretendo esgotar, absolutamente, toda a produção artística desenvolvida no período citado, mas trazer importantes representantes do uso do espaço teatral na história mundial.
O objetivo deste texto é também criar pontes com o que foi produzido no Brasil, numa tentativa de direcionar o olhar para a nossa maneira brasileira de produzir teatro e, nesse sentido, mapear os desdobramentos artísticos, herdados no decorrer dos anos, nos transformando no teatro que produzimos neste inicio do século XXI. Pretendo valorizar a aproximação com a nossa produção atual, colocando lupa nos moldes de criação nacional contemporânea.
            Revisitar a história do teatro mundial e brasileiro, valorizando as citações e descrições cenográficas, a encenação[2] conforme o uso do espaço, tornou-se o desejo de organizar o pensamento sobre a evolução do espaço cênico a partir de citações de espetáculos ou poéticas, dispostas em forma cronológica.
Ao analisar o uso e o desenvolvimento do espaço cênico no século XX, não podemos nos esquecer de que, para criar as diferentes possibilidades de relações espaciais, nós herdamos todo o desenvolvimento tecnológico da história do teatro mundial, tanto do ponto de vista do edifício teatral, como dos recursos de cenotecnia[3], maquinarias desenvolvidas ao longo do processo histórico. Dessa maneira, identifico que várias das práticas e escolhas adotadas no século XX foram também uma forma de revisitar escolhas adotadas em diferentes momentos históricos do teatro. O recorte é o século XX, mas, apesar de não irmos até o espaço cênico grego, berço do teatro ocidental, nós sabemos que vem de lá alguns dos recursos mecânicos e por que não dizer tecnológicos da cenografia teatral. Da mesma maneira, outros recursos técnicos foram criados no espaço teatral romano, no medieval, no elisabetano, ao ar livre e depois nos edifícios inteiramente fechados, com topologia a italiana. Mesmo que não consideradas, é sobre essas heranças que o espaço cênico do século XX operou.
Surgido no Renascimento, o teatro à italiana, caracterizado principalmente por ser um edifício fechado de topografia frontal do palco para a plateia, veio se desenvolvendo desde lá, avançando em recursos cenográficos no período Barroco e se tornando ideal para as recriações naturalistas no final do XIX e início do XX, por exemplo, quando o teatro se empenhava em reproduzir no palco, com profundo detalhamento, a realidade que vivíamos no cotidiano.
            A caixa cênica propriamente dita, com movimentação de cenários verticais e horizontais, urdimento[4], bastidores[5] e porão com elevadores, foi integrada ao teatro a italiana somente no século XVIII, em 1778, no teatro Alla Scala em Milão, projetado por Giuseppe Piermarini (1734 – 1808). Foram emprestados termos da tecnologia naval para batizar muitos dos equipamentos instalados na caixa cênica, como as manobras[6], as roldanas[7], os contrapesos[8], etc.
            Outros espaços não convencionais foram utilizados como o lugar de representação ao longo da história, como praças públicas, galpões, igrejas, instituições públicas desativadas, como hospitais e presídios, entre outros. Essas abordagens espaciais também não são exclusivas do século XX, pelo contrário, desde a Grécia antiga elas veem se transformando e se tornando nossa herança cultural.  

O entendimento do espaço cênico no século XX

             O espaço cênico pode ser compreendido como o lugar onde a cena acontece e, dessa maneira, pode variar sua compreensão mediante ao tipo de poética[9] teatral desenvolvida no espetáculo teatral, bem como a relação que se estabelece com a plateia. Ou seja, num teatro convencional, de topografia italiana, por exemplo, com a divisão clássica e frontal entre palco e plateia, o espaço cênico pode ser compreendido, por um lado, como o interior da caixa[10] cênica, se o espetáculo acontecer inteiramente nessa fronteira. Por outro lado, podemos considerar o auditório todo como o espaço cênico, se o espetáculo ocupar também a área destinada inicialmente para a plateia, como poltronas, escadas, corredores, balcões, etc. Nesse caso a relação do espetáculo com a audiência extrapola os limites do proscênio[11] e passa a acontecer também aos redores do público presente.         Contudo, o fio condutor para a realização de tal recorte na história mundial do teatro, justifica-se nos exemplos que interagem com a noção de relação com o espectador, valorizando espetáculos que tenham considerado a relação espacial com o público como pensamento do espaço cênico da peça.
            Num teatro alternativo, ou seja, um espaço experimental para espetáculos, como um galpão, uma sala preta ou qualquer outro edifício teatral que fuja dos moldes convencionais e da divisão frontal entre palco e plateia, o espaço cênico corresponde, quase sempre, ao todo espacial, ou seja, o lugar da cena e o lugar do público, misturados muitas vezes, onde a plateia pode ter seu lugar definido, disposta em corredores por arquibancadas móveis, por exemplo, ou contornando a cena pelos quatro lados. Propor o espaço cênico de forma alternativa pode ser, inclusive, não preparar um lugar específico para cada integrante do público, misturando atores e espectadores. Tais espaços tendem a propor uma relação mais dinâmica e intensa entre o espetáculo e o público, mas, ressaltamos novamente que a disposição espacial não é a única responsável pela eficácia do encontro entre espetáculo e público. Até mesmo nos espaços experimentais a poética da encenação é a que valorizará esse espaço relacional do encontro, ou não.
            A ideia de espaço cênico engloba a ideia de cenografia que, por sua vez, “é o espaço eleito para que nele aconteça o drama ao qual queremos assistir. Portanto, falando de cenografia, podemos entender tanto o que está contido num espaço quanto o próprio espaço” (RATTO, 1999, p. 22).
            Sob um aspecto, o espaço cênico pode ser abordado como um espaço físico, arquitetural, composto de estruturas que se relacionam com as formas cenográficas, ou com as distâncias percorridas, com planos e profundidades.
O uso do palco no interior de uma caixa cênica de um teatro à italiana, por exemplo. Este formato prevê a possibilidade do desenvolvimento de uma série de acontecimentos ficcionais, através das possibilidades maquinarias, como o uso do urdimento e de todas as estruturas que nele são instaladas, bem como os recursos instalados na parte inferior do piso do palco, como o fosso[12]da orquestra, quarteladas[13], elevadores[14], etc.
Sob outro aspecto, o espaço cênico também pode ser abordado como um lugar temporal, criado segundo as circunstâncias dadas pela peça e, nesse sentido, não estamos falando das características físicas do espaço, mas daquelas que a dramaturgia instaura. Dentro dessa perspectiva posso ressaltar, por exemplo, as imagens criadas pelo público presente a partir dos estímulos trazidos pelos atores ou pelos demais elementos do espetáculo. O espaço cênico, nesta abordagem, torna-se um lugar de compartilhamento entre as proposições do espetáculo e a recepção do público, sendo assim, um lugar subjetivo agregado à construção espacial, portanto, nesse sentido, falamos mais de sensações do que decorações espaciais.

Continuo defendendo o conceito do espaço cênico considerado como uma atmosfera que atua no espetáculo de forma sensorialmente dramática. Ataco violentamente o decorativismo gratuito, tudo o que procura agradar, o pleonasmo, o adjetivado, o pomposo, enfim tudo o que se sobrepõe pretensiosamente à correta interpretação do texto e do espetáculo que o intermedia (RATTO, 1999, p. 19).

            Diante disso, o espaço cênico torna-se mais do que um espaço passível de ser medido em metros quadrados, ele pode ganhar outras proporções e geometrias que não necessariamente tem a ver com as dimensões físicas, mas subjetivas, internas, onde possa ser ampliado ou reduzido segundo a relação com o espectador, “pois, o espectador tem uma capacidade de intuição que lhe permite ir além da visualidade proposta pelo espetáculo que está sendo apresentado” (RATTO, 1999, p. 24).
É sobre essa perspectiva que lançarei olhares para o século XX e identificarei algumas das principais proposições do uso do espaço cênico, tal como defino aqui, uma disposição espaço-temporal. A disposição da plateia e a maneira como os trabalhos desenvolvidos consideraram essa relação, também serão vieses que definirão as escolhas apresentadas. Tal estudo me guiou no desenvolvimento da pesquisa realizada durante o desenvolvimento de minha dissertação de Mestrado, principalmente quando falei do espaço relacional e de como o teatro avançou sobre esse tema.
Vele ainda lembrar que, sendo o século XX um tempo vivido pelas mais diferentes vanguardas, como o Expressionismo, o Futurismo, e o Surrealismo, por exemplo, o teatro nesse século também se permitiu experimentar formatos que fogem da espacialidade tradicional.

Olhando para o século XX

            O naturalismo cênico marca na história do teatro mundial grandes contribuições para o fazer teatral. Vem desse período a convenção do que chamamos do primeiro encenador da história, André Antoine (1858 – 1943). Como encenador, nesse momento histórico, ou seja, na passagem do século XIX para o XX, entendemos o diretor que apresenta mais do que marcações cênicas e resoluções técnicas para seus espetáculos. Digamos que um encenador assina seus trabalhos e, dessa maneira, imprime sua autoria nas escolhas apresentadas.
Convencionou-se considerar Antonie como o primeiro encenador, no sentido moderno atribuído a palavra. Tal afirmação justifica-se pelo fato de que o nome de Antonie constitui a primeira assinatura que a história do espetáculo teatral registrou (da mesma forma como se diz que Manet ou Cezánne assinam os seus quadros). Mas também porque Antonie foi o primeiro a sistematizar suas concepções, a teorizar a arte da encenação (ROUBINE, 1998, p. 24).

O encenador dedica-se à visão global de um espetáculo, às questões dos atores, da relação palco e plateia, das necessidades técnicas e artísticas que envolvem todos os elementos visuais e sonoros de uma representação. Nesse sentido, o surgimento da figura do encenador vai pontuar todas as proposições espaciais da prática teatral no século XX, escolhas e práticas que me interessam e que, de certa forma, justificam os recortes deste texto.
1888 – André Antoine em plenas atividades na sua primeira fase de produção teatral, impregnada de realidade, fazia do palco a reprodução exata da vida, cuidando dos pequenos detalhes na encenação.
Antonie apresentava uma caixa cênica mostrando aposentos com portas praticáveis e janelas, tetos de madeira sustentados por pesadas vigas, troncos de árvores naturais, gesso de verdade caindo das paredes. Seu famigerado golpe de mestre foi pendurar, certa vez, postas de carne crua em ganchos de açougueiro no palco, coisa que fez num acesso de raiva, quando um cenógrafo o deixou na mão. Foi uma solução relâmpago, nascida do mau humor, não um barbarismo inerente a sues princípios. (BERTHOLD, 2006, p.454)

Ele integrava objetos reais no espaço cênico, que continham a materialidade real, as marcas do passado e de uma existência verdadeira. Com isso, produzia o que podemos chamar de uma teatralidade do real. Antonie, num sentido mais abrangente, interessava-se na exploração do espaço cênico, sobretudo, como potencialidade para o trabalho expressivo do ator, justificando sua prática como um encenador que realmente dedicava-se ao conjunto de possibilidades expressivas do espetáculo. Digamos que seus conhecimentos e interesses englobavam o que seria o trabalho de um diretor, de um cenógrafo, de um iluminador e de um preparador de ator, entre outras funções da encenação.
O Naturalismo cênico, ainda no final do século XIX, reproduzia técnicas de construção cenográfica onde a natureza era fielmente copiada e, muitas vezes, os próprios materiais naturais eram levados para a cena, como árvores e folhagens.
            Entre outras estratégias naturalistas, Antonie propunha o jogo com a quarta parede[15] imaginária, onde o público era completamente ignorado, ganhando muitas vezes as costas dos atores durante as suas falas (BERTHOLD, 2006, p.454).
            O teatro funciona como um espelho da sociedade e, portanto, as mudanças e os avanços vividos por ela influenciaram e continuam a influenciar a produção teatral. Um grande exemplo disso são os avanços alcançados com a revolução industrial ou com o advento da luz elétrica e, posteriormente, com a invenção do cinema.
            1891 – A iluminação elétrica torna-se o principal instrumento de estruturação e animação do espaço cênico (ROUBINE, 1998, p. 21). É o inicio do seu uso nas montagens teatrais, a inserção da iluminação ganhará força logo adiante, nos primeiros anos do próximo século. Neste ano, a luz elétrica como possibilidade de iluminação cênica é, sobretudo, utilizada no trabalho da bailarina Loïe Fuller (1862 – 1928), pois não se limita a uma definição atmosférica do espaço.

Não espalha mais sobre o palco um nevoeiro do crepúsculo ou um luar sentimental. Colorida, fluida, ela se torna um autêntico parceiro da dançarina, cujas evoluções metaforseia de modo ilimitado. E se a luz tende a tornar-se protagonista do espetáculo, por sua vez a dançarina tende a dissolver-se, a não ser mais do que uma soma de formas e volumes desprovidos de materialidade (ROUBINE, 1998, p. 22).  

            Alguns artistas, em diversos momentos da história, propuseram teorias e práticas muito avançadas para a sua época e, portanto, tais práticas só foram reconhecidas, pela originalidade, genialidade e ousadia, muito tempo depois. Na história da arte tivemos muitos desses exemplos e no teatro, significativamente, também.  Podemos dizer que Alfred Jarry (1873 – 1907) foi um deles.
1896 – Jarry tumultua Paris ao montar sua peça Ubu Rei, dirigida por Lugné-Poe (1869-1940), uma peça de cunho simbolista, considerada no futuro como a precursora do surrealismo no teatro. Por vários fatores, dramatúrgicos e principalmente estéticos, Jarry contrapõe seus valores aos ideais naturalistas e aos recém chegados valores simbolistas desse final de século. Entre outras proposições, coloca um ator para representar uma porta, fazendo de sua mão a maçaneta.  “As resoluções cênicas geram as personagens que por sua vez geram as resoluções. Seria Jarry o primeiro encenador-autor do teatro? Pelo fato de criar texto e cena de forma tão própria e inovadora, Jarry cria uma linguagem específica” (SCHEFFLER, 2008, p.6).
            O cenário de Ubu Rei representa o lugar algum, misturando elementos reais em situações ficcionais, como, por exemplo, as árvores aos pés das camas e elefantes trepados nas estantes (ROUBINE, 1998, p. 36). Dizemos que as proposições cenográficas de Jarry abriram lugar para a ressignificação do público diante do que é mostrado na encenação. O sentido é extrapolado para além da representação real de um espaço existente.
            Em outro contexto, mas ainda falando de proposições avançadas no seu tempo, nesse mesmo ano de 1896, Karl Lautenschlager (1868 – 1952) inventa o palco giratório[16], em Berlin, criando assim novas possibilidades espaciais da cena e tornando-se o principal interesse do alemão Max Reinhardt (1873 – 1943), um grande diretor de teatro deste início de século (BERTHOLD, 2006, p. 483).
            1903 – Max Reinhardt dirige Sonho de uma noite de verão, de Shakespeare, faz uso do palco giratório, colocando sobre ele um cenário composto por “árvores reais num verde tapete de grama, árvores atrás das quais a lua nascia e sobre as quais as estrelas brilhavam nas abóbadas celestes” (BERTHOLD, 2006, p. 487). Ele estava interessado na composição com o ciclorama[17], na iluminação multicolorida, nos efeitos e possibilidades de construção da plasticidade da cena. Enquanto diretor e cenógrafo, esta foi a mais expressiva e reconhecida montagem de Reinhardt, apesar das inúmeras propostas que desenvolveria nos próximos anos.
            O naturalismo, com relação a encenação e os seus recursos técnicos do edifício teatral, limita-se a representar o real, com todos os recursos que lhe era possível. Porém, o real limitava as possibilidades expressivas no teatro.
Nesse momento, o simbolismo ganha espaço nas produções cênicas, sobretudo nas montagens dos balés russos, apresentados com orquestras, nesse final do século XIX e início do século XX. Mais do que a representação fiel dos elementos reais, o teatro, o balé e a música clássica estavam interessados em representar estados da alma.

Para os simbolistas, o empenho fotográfico do drama naturalista era uma tela que obstruía a penetração do olhar em vistas mais profundas. O palco não deveria apresentar um milieu real, mas explorar zonas de estados d´alma. Sua tarefa não era descrever, mas encantar. A luz adquiriu uma função importante e a palavra encontrou auxílio na música e na dança. Em alguns casos felizes, os simbolistas conseguiram transpor disposições íntimas enraizadas no lirismo para o domínio público do palco. O mérito de o drama simbolista ter sobrevivido sem danos a tais revelações do “état de l´âme” (“estado de alma”), pode ser creditado unicamente à musica. (BERTHOLD, 2006, p.469)

            O Simbolismo vem para explorar todas as potências tecnológicas que o palco naturalista não conseguia alcançar, pois, limitava-se à realização de representações que imitavam a realidade, como dissemos. Nesse sentido, o simbolismo, explorava o sonho, a materialização do irreal e a representação da subjetividade (ROUBINE, 1998, p. 27). Como romper com o ilusionismo figurativo no teatro? E, sob outro aspecto, como inventar um espaço especificamente teatral? Como fazer para o espaço cênico não ser reduzido a uma imagem pictórica? Essas foram questões levantadas pelos pintores simbolistas que dedicaram se a prática da cenografia.
            O teatro abre-se para outras descobertas.
1906 - Vsevolod Meyerhold (1874 – 1940) monta em São Petersburgo o drama Spectros, de Henrik Ibsen (1828 – 1906), apresentada pela primeira vez em 1889 na Freire Bühne em Paris. Na montagem de 1906, Ibsen insere características antinaturalistas na encenação, a começar pelo palco italiano sem cortinas na boca de cena[18] (BERTHOLD, 2006, p.453).
            Todas as proposições instauradas no espaço de representação eram assimiladas pelo público nesse início de século. Algumas experimentações espaciais, pensando na relação espetáculo e espectador, começaram a ser implantadas nos espaços de representação.
Também em 1906, Max Reinhardt cria um espaço intimista para apresentações que ficou conhecido como Sala Kammerspiele, estreitando as relações entre palco e plateia. Esse formato vai resultar, num futuro próximo, no Teatro Íntimo de August Strindberg (1849 – 1912) em Stocolmo, inspirado pelas proposições espaciais de Reinhardt na Kammerspiele.

Para Max Reinhardt, o Kammerspiele era simplesmente um acorde da orquestra de seus planos – um acorde que sustentava com requintada delicadeza, conveniente a esse auditório que, com seu revestimento escuro e cadeiras confortáveis, parecia tão particular quanto uma sala de estar. Para a inauguração, em 08 de novembro de 1906, ele levou os Espectros, de Ibsen, com cenários do pintor norueguês Edvard Munch (BERTHOLD, 2006, p.487).

O investimento era em espaços intimistas, permitindo o teatro de câmara[19], oferecendo alternativas para fugir de um tipo de teatro muito oneroso, em escala menor, mas que também, por outro lado, favorecendo um teatro próximo do espectador, realizado nesses espaços pequenos, configurados como caixas pretas, espaços neutros para receber diferentes montagens, utilizando o espaço cênico de formas variadas, conforme as características de cada trabalho.

Então, a ênfase se concentra no espaço dramático criado entre os atores e o objeto, e no mobiliário ou cenário necessário para contar a história. O piso do palco é em declive ou inclinado, para contrabalançar a altura ascendente do auditório, o nível do olhar do ator encontra a plateia de modo íntimo, direto e poderoso, e uma ligação intensa é alcançada imediatamente, da mesma forma que alguém pode se sentir quando está sobre os palcos vazios dos antigos teatros barrocos (HOWARD, 2015, p. 33).

A parir daí, em contrapartida, Reinhardt propõe experiências cênicas para grandes plateias, massas de pessoas, recriando as atmosferas do teatro grego ou medieval, por exemplo. Ele aluga o Zirkus Schumann, uma grande tenda, para encenar o Édipo Rei, de Sófocles (406 a.C.). A cenografia criada foi uma enorme e imponente escadaria, ocupada por uma multidão de figurantes, que realizavam movimentos, integrando-se ao espetáculo. Em Londres, ele encena O Milagre, de Karl Vollmöller (1878 – 1948), dentro de uma cenografia cheia de vitrais, arcos ogivais e colunas, reconstruindo a espacialidade de uma catedral gótica, onde o público era conduzido na penumbra, revivendo uma atmosfera medieval mística, durante o espetáculo.
Essa foi uma época bastante promissora para as renovações no espaço cênico teatral no teatro europeu, sobretudo, pois, as novas perspectivas do uso do espaço estavam no foco da produção teatral, certamente impulsionadas pelo advento da luz elétrica.
            Sobre desenvolver a iluminação cênica, foi o que fez o suíço Adolphe Appia (1862 – 1928) ao projetar o espaço de representação a partir do estímulo que as possibilidades de iluminação no espetáculo lhe instigavam. Appia avançou consideravelmente na formulação de um espaço tridimensional, favorecendo a cena, criando com a luz, atmosferas, profundidades, sombras e ênfase nos espaços de representação.

Ele atribuiu à luz uma tarefa que até então o teatro não fizera nenhum uso, ou seja, lançar sombras, criar espaço para produzir profundidade e distância. Appia construiu formas arquiteturais de pesados blocos, cubos e cunhas, transformando-as nas largas superfícies daquilo que chamamos de “cena interior”, de acordo com seu princípio do palco estilizado em três dimensões, com pontos de luz. (BERTHOLD, 2006, p. 470)

Ele foi o primeiro arquiteto cênico do século XX, introduzindo formas arquitetônicas numa época em que o ilusionismo, através dos painéis pintados, vigorava na cenografia teatral.
O inglês Edward Gordon Craig (1872 – 1966) compartilha das proposições de Adolphe Appia, sobretudo no uso da iluminação, e, por ser filho de artistas e ser ator, totalmente inserido nas produções artísticas de seu tempo, avança nas questões que renovarão o pensamento do espaço cênico, no século XX, a partir do uso e entendimento do palco à italiana e seus desdobramentos na produção cênica.

A revolução potencial que a iluminação elétrica permite ao menos imaginar enriquece a teoria do espetáculo com um novo pólo de reflexão e de experimentação, com uma temática de fluidez que se torna dialética através das oposições entre o material e o irreal, a estabilidade e a mobilidade, a opacidade e a irisação, etc. Em suma, aparece pela primeira vez, sem dúvida, a possibilidade técnica de realizar um tipo de encenação liberto de todas as amarras dos materiais tradicionais (ROUBINE, 1998, p. 23).

Craig, chega a propor que a cenografia, enquanto formas arquitetônicas, praticáveis de diferentes planos com rampas e escadas, possa ser instalada na caixa cênica como continuação do espaço ocupado pela audiência, o auditório. Porém, não questiona o uso da frontalidade tradicional, ao contrário, faz uso da imobilidade do espectador como recurso de contemplação da grandiosidade de suas formas arquiteturais. Craig vê a encenação como uma obra de arte, uma liturgia da beleza, um jogo de formas e volumes, animados pelas sombras e luzes, uma estética que pede a posição frontal dos espectadores.
As pesquisas de Craig visavam a uma animação cada vez mais complexa e rica das possibilidades expressivas do espaço cênico. Daí um trabalho, em matéria de luz, que tanto impressionou seus contemporâneos. E também a famosa invenção dos screns, espécie de anteparos que devem poder ser manejados à vontade e permitir uma fluidez das formas e volumes, fluidez que a luz, cortando as linhas retas, suavizando os volumes, arredondando os ângulos ou, ao contrário, pondo-os em evidência, tornaria absoluta. Essa inovação técnica, que permitiria passar de um palco estático a um palco cinético, é julgada por Craig tão fundamental que ele considera estar inaugurando, com ela, um novo espaço de representação, o quinto palco (os quatro anteriores sendo o anfiteatro grego, o espaço medieval, os tablados da Comédia Dell´arte e, finalmente, o palco italiano) (ROUBINE, 1998, p. 89).

O teatro no Brasil, nesse início e praticamente em toda a primeira metade do século XX, aconteceu em espaços tradicionais, seguindo o modelo do teatro italiano, com plateia disposta frontalmente para o palco. Os cenários, na maioria das vezes, eram telões pintados, concebidos prontos, quase sempre por pessoas não especializadas na área.

Até o inicio do século XX, a cenografia brasileira se configurava como um trabalho de pintura. A cenografia era feita na base dos telões pintados em perspectiva, dando a ilusão de profundidade, e, quando havia outros elementos (móveis, objetos, utensílios, etc.), eles eram extremamente realistas e conjugavam-se perfeitamente com a pintura – que também o era. (...) Era comum no início do século XX que telões e elementos cênicos fossem usados por diferentes produções. Uma produção chegava de viagem muitas vezes ia ao depósito do teatro ver o que havia de disponível para usar em sua montagem (SERRONI, 2013, p. 45).

O início do século XX foi significativo com relação ao surgimento de novos espaços para a produção teatral brasileira.
1909 – O Teatro Municipal do Rio de Janeiro é inaugurado no dia 14 de Julho (FARIA, 2012, p. 374). Várias produções estrangeiras, sobretudo italianas, foram trazidas para se apresentarem no grande palco do teatro municipal. Por outro lado, um pouco mais tarde, a produção nacional também é valorizada com a inauguração desse teatro, assim como o surgimento de outros espaços, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo.
O desenvolvimento da produção nacional, porém, não acompanha as proposições estrangeiras, principalmente, pelo nosso movimento modernista ter acontecido tardialmente no Brasil, em comparação com a Europa, sobretudo.
1911 – Stanislawiski monta Hamlet no Teatro de arte de Moscou[20] com cenografia de Gordon Craig. Para este trabalho ele utiliza seus famosos Screens (biombos), estruturas móveis que reconfiguravam o espaço arquitetônico pela ação dos atores. Com este recurso, Craig propunha o espetáculo numa estrutura espacial sem intervalos ou cortinas. Seus biombos integravam o auditório ao palco, mascarando com outras formas arquitetônicas a caixa cênica do palco italiano, um espaço já conhecido pelo público. “Craig concebia seu palco não apenas na qualidade de simbolista da luz, isto é, como iluminador, mas também, na mesma medida, como arquiteto (BERTHOLD, 2006, p. 471).
O expressionismo, também nesse inicio do século XX, propunha, entre outros recursos cênicos, a luz colorida como estratégia para a reconstrução de atmosferas significantes. No mesmo ano de 1911, em Berlin, Ernest Stern (1876 – 1954) montou Die Wupper, de Else Lasker-Shüler (1869 – 1945), onde “chaminés de fábrica se inclinavam sobre casas vermelho-ferrugem de operários, e violentos contrastes de cor enfatizavam a atmosfera realisticamente expressiva da peça” (BERTHOLD, 2006, p. 476).
Os espaços rítmicos de Adolphe Appia também foram criados na Alemanha nesse mesmo ano de 1911. Foram assim chamados por ele, sobretudo, porque permitiam que o ator desenvolvesse uma trajetória, um deslocamento físico, em diferentes planos, rampas ou em degraus de escadas.

Um arranjo de escadas e plataformas que fornecia módulos mutáveis, verticais e horizontais. A atuação nesses níveis distintos permitia que os atores ficassem isolados em feixes de luz especialmente focalizados, realçando sua presença no palco em espaços sem cenários adicionais. Isso deu início a uma busca por soluções cênicas mais esculturais (HOWARD, 2015, p. 28).

O uso do teatro italiano, sua estrutura estática, com plateia fixa, faz os encenadores proporem, nesse momento do teatro, algumas tentativas espaciais de aproximação da cena com o público. Para a realização dessas tentativas, a cenografia, como elemento estrutural e arquitetônico, foi fundamental para tais experiências.
1913 – Jacques Copeau (1879 – 1949), sem questionar a posição frontal tradicional, estabelece algumas estratégias na tentativa de aproximar palco e plateia no teatro italiano, criando uma escada que liga os dois pontos, inspirado por Craig, modulando a luz para trás da plateia, na tentativa de interligar o auditório e o palco, comumente separados pelas luzes da ribalta[21] (ROUBINE, 1998, p.86).
O Surrealismo desperta o interesse pelo teatro em importantes pintores da época, entre eles estavam Pablo Picasso (1891 – 1973), Henri Matisse (1869 – 1954), Max Ernst (1891 – 1976) e Joan Miró (1893 – 1983). O palco torna-se lugar de composições pictóricas, integrando o discurso do figurino ao da cenografia. As cores também estabeleciam, sobretudo, a temática das encenações dos balés europeus desse período.
O uso da espacialidade continua o mesmo com as criações surrealistas no teatro, ou seja, o palco italiano. Porém, a maneira de se expressar e a maneira de se relacionar com o público, abre espaço para outras camadas de interpretação, mais relacionadas com o subjetivismo, por exemplo.
Além dessas experiências, o teatro também, como na idade média, sai às ruas, ou ocupa espaços ao ar livre, como na Grécia antiga. Vemos que, no decorrer do século XX, várias experiências ocorreram fora do palco italiano.
1916 – Inaugurado no Rio de Janeiro o Teatro da Natureza, no dia 24 de Janeiro, um grande teatro nos moldes europeus, ao ar livre, “montado no Campo do Santana, com 70 camarotes, 1.000 lugares distintos, mil cadeiras, mil galerias, havendo espaço para lugares em pé para 10 mil espectadores” (FARIA, 2012, p. 380). Construído para encenar releituras brasileiras, principalmente, das tragédias gregas, lembrando os teatros de arena da Grécia. Este teatro mantém se em atividades por pouco tempo, sendo desativado em Abril do mesmo ano, alvo do desinteresse dos espectadores que deixaram de frequentar o teatro.
Às vezes, como já disse, alguma proposição artística acontece num momento aquém do seu tempo, de certa forma, sendo inapropriada para a assimilação da sociedade existente. Voltamos agora para um outro exemplo dessa relação.
1917 – Guillaume Apollinaire (1880 – 1918) escreve As Tetas de Tirésias, onde lemos no prólogo que “a peça foi feita para um palco antigo, pois, ninguém construiria para nós um teatro novo, um teatro circular com dois palcos, um no centro e outro formando um anel em volta dos espectadores e que permitirá um grande desenvolvimento da nossa arte moderna” (ROUBINE, 1998, p. 84). O que se observa com as proposições de Apollinaire é que suas ideias com relação ao espaço são inovadoras para a sua época, onde, principalmente, a soberania do palco italiano prevalecia nas montagens teatrais. Tais proposições preveem relações mais intensas com o espectador e serão retomadas mais adiante, sobretudo com as investidas de Antonin Artaud (1896 – 1948) na década de 30, no Teatro da Crueldade[22].
Retomamos o desenvolvimento das proposições com relação à espacialidade.
1920 - Ainda investindo na relação com a plateia, Max Reinhardt, posiciona atores sentados entre a plateia, gritando e interferindo numa cena de Danton, onde uma assembléia revolucionária era interpretada no cenário criado para ser um tribunal, de longa rampa que avançava  até as primeiras fileiras da plateia (BERTHOLD, 2006, p.488).            Nessa experiência a plateia sai do seu lugar de espectador observador para um espectador mais ativo, estimulado a sentir outras reações, uma vez que estava tão próxima dos atores, ocupando o mesmo lugar da representação.
No Brasil, que antes se dedicava, principalmente, a construção de cenários de gabinetes[23], na década de 20, traz inovações cenográficas com o Teatro de Revista[24], inspirado no que vinha fazendo a França e Portugal, sobretudo, porém, adaptando aos temas nacionais. Este tipo de encenação contava com auxílio de cenários móveis, auxiliados pelo uso da iluminação.

Em 1929, mais uma novidade foi acrescentada à encenação das revistas: a passarela baixa, utilizada pela primeira vez na Guerra do mosquito, de marques Porto e Luiz Peixoto, um dos maiores acontecimentos da década. O novo recurso cenográfico servia à estrela Margarida Max, oferecendo-lhe a possibilidade de contato mais íntimo com seu público (FARIA, 2012, p. 444).

O Teatro de Revista, pela própria linguagem, instaura uma forma muito mais direta de comunicação com a plateia, através de musicais, cenas curtas e com bastante humor, o espetáculo extrapola os limites do palco e se relaciona diretamente com os espectadores.
A relação com o espectador, como vemos, foi uma das principais preocupações do teatro produzido no século XX, cada poética da sua maneira. Alguns artistas que pensaram categoricamente essa relação, propuseram maneiras bem mais efetivas de comunicação com o espectador, como foi o caso de Artaud.
1924 – Antonin Artaud aspirava escapar das limitações da estrutura espacial italiana do teatro e sonhava em abolir o caráter fixo da relação entre espectador e espetáculo (ROUBINE, 1998, p. 85).
O que Artaud começa a desenvolver é sua nova proposta de encenação, estimulado entre outras coisas, pelo Teatro de Balí e suas proposições buscavam uma forma de encenação mais visceral, que dialogava com a ideia de ritual e que, diretamente, propunha uma reflexão sobre o espaço ideal para abrigar um espetáculo teatral. Um pouco mais adiante, veremos como é sua proposição a cerca do espaço cênico.
O teatro busca suas próprias estratégias, técnicas e espacialidades que realmente explorassem a teatralidade, ou seja, tudo aquilo que distinguisse o teatro das demais linguagens artísticas, como o cinema, por exemplo. Nesse sentido, o uso do espaço no século XX, permeia as propostas de encenação, principalmente aquelas que ousaram extrapolar a tradição e o conforto do teatro italiano.
1930 – Um projeto arquitetônico audacioso para a construção de um teatro muito moderno foi desenhado por Walter Gropius (1883 – 1969), o diretor da Bauhaus em Dessau, atendendo aos ideais de Erwin Piscator (1893 – 1966). Um edifício multiuso, que poderia ser utilizado como teatro de arena, com palco central, ou anfiteatro e também poderia ter seus espaços periféricos como áreas de representação, tudo equipado com muita tecnologia, plateia giratória, projeções por todas as paredes, etc. O projeto do Teatro Total, elaborado por Gropius, foi exposto em Paris, mas, nunca foi realizado devido à grandiosidade de suas propostas.
A inovação era uma pratica constante no teatro de Piscator, por exemplo, entre outras proposições cênicas, para reforçar a teatralidade de suas encenações, ele traz para a cena esteiras rolantes que cruzavam o palco de uma coxia à outra, deslocando atores e elementos cenográficos.
1932 – Jardel Jércolis (1894 – 1944) monta o espetáculo Traz a nota, pela Companhia To-lo-ló, no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. Entre outros espetáculos, essa companhia marca um período de mudanças no percurso do teatro musicado no Brasil, principalmente pela linguagem elaborada dos recursos cênicos, onde a iluminação ganha papel importante nas encenações.

A iluminação passou a ser elemento integrante da linguagem teatral, pois Jércolis a conduzia com técnica e sensibilidade, transfigurando cenários, fazendo magia com diferentes intensidades, cores e sombras. E essa foi uma de suas grandes contribuições à história do espetáculo no Brasil, até então sem técnicos ou encenadores que levassem a iluminação a sério (FARIA, 2012, p. 447).

1933 – Encenada a peça Amor..., com Dulcina de Moraes (1908 – 1996), uma montagem ousada para a época no Brasil, sobretudo, com relação ao uso do espaço cênico e da cenografia. Cinco áreas de representação foram criadas no cenário que se dividia horizontalmente e verticalmente, permitindo que o espectador pudesse acompanhar cenas sucessivas nos cinco espaços diferentes, acompanhando o desenvolvendo de uma ação específica, que vai evoluindo em cada cenário. Tal montagem propõe uma forma experimental de criação teatral, porém, não emplaca naquele momento, sendo retomada somente na próxima década no Brasil. “Além da inovação do espaço cênico, inspirado no cinema, também na iluminação Oduvaldo experimenta, inserindo cortes de luz, até então nunca utilizados em nossos palcos, para marcar transições de cenas” (FARIA, 2012, p. 416).
1935 – Artaud monta Os Cenci, em um teatro de topografia italiana, porém, inconformado com as limitações das relações espaciais no desenvolvimento das potencialidades teatrais, seu teatro vai apontar para o Teatro da Crueldade, como ele vai teorizar (ROUBINE, 1998, p. 85). A encenação, idealizada por Artaud, prevê a criação de um espaço circular, como ele mesmo chamou, que inserisse os espectadores no centro da ação, dispostos em cadeiras giratórias. Come essa nova topografia da cena, o espectador se envolveria integralmente com o espetáculo, pois, sua aproximação com os acontecimentos cênicos garantiria que o espetáculo fosse um acontecimento realmente sensorial, visceral e intenso.
Também em 1935, Bertold Brecht (1898 – 1956) formula suas reflexões sobre a arquitetura cênica, onde expõe principalmente sua maneira de ver a relação espacial e as potências tecnológicas da caixa cênica. Ele condena o ilusionismo e a relação alucinatória que o espetáculo tradicional instaura através das possibilidades técnicas do palco fechado. Procura esvaziar o palco de tudo o que não for necessário, transformando-o numa área de jogo, um espaço para fortalecer as necessidades dos atores. Ele assume descaradamente a teatralidade, utiliza cartazes no lugar de objetos, por exemplo. (ROUBINE, 1998, p. 90).
O que Brecht estava interessado era no envolvimento crítico com a encenação, seu teatro era basicamente político, revolucionário, pois, trazia como tema os próprios movimentos sociais. Diante disso, para ele, era necessário que o público não se distanciasse da realidade e do momento presente, a encenação não poderia envolver o espectador na ficção, tornando-se fábula. Brecht queria que o espectador se posicionasse criticamente sobre as ideias do espetáculo.
Um consenso estabelecido na primeira metade do século XX com relação ao público é que este, na maioria das poéticas propostas, mantivesse o seu lugar de passividade intelectual, pois recebia todas as informações já mastigadas no espetáculo. Nesse sentido, a posição frontal e o conforto do teatro italiano favorecia esse pensamento. Como vimos, houveram algumas exceções importantes no desenvolvimento histórico, realçadas neste texto, como as proposições de Jarry na passagem do XIX para o XX, por exemplo, que estimulavam a ressignificação dos elementos visuais, ou a intimidade da relação cena/espectador proposta por Reinardt na primeira década do XX. Porém, as investidas da primeira metade do XX, na sua maioria das encenações, mantinham o espectador num lugar de observador apenas.
A característica passiva do espectador, na primeira metade do XX, se deva, principalmente, pelo uso soberano do palco italiano, como já disse, com algumas exceções de montagens. A relação frontal e fixa na qual o público é posicionado, diante da caixa cênica, é responsável pela atitude passiva de quem apenas observa uma situação, como quem contempla uma pintura, por exemplo.  Tal soberania do uso do palco italiano se deve, sobretudo, porque

Ele é a solução que oferece melhores condições de visibilidade e acústica. A que possibilita todas as transformações cênicas exigidas pela ação. A que permite os efeitos de ilusão (desde a imitação naturalista até a magia feérica) mais perfeitos. Comparadas com o teatro italiano, as outras fórmulas aparecem, seja como tentativas às cegas, aproximações aos poucos à solução inexcedível que ele representa, seja como um mal menor resultante da precariedade de recursos técnicos de que dependem as atividade do espetáculo (ROUBINE, 1998, p. 81).

1943 – O diretor polonês Zbigniew Ziembinski (1908 – 1978), recém chegado no Brasil, monta Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, com o grupo Os Comediantes, no Rio de Janeiro. A montagem é considerada por muitos como a primeira peça modernista brasileira, sobretudo, pela dramaturgia revolucionária de Nelson Rodrigues para os padrões da época, mas também pelo tipo de encenação que considerava a cenografia, criada por Tomás de Santa Rosa (1909 – 1956), como parte instigante da dramaturgia, ao dividir o espaço cênico em três diferentes planos simultâneos e representar cada um com um tempo específico. A cenografia dessa montagem quebra com o padrão realista vigente até o momento e, portanto, é um marco na cenografia brasileira.

Assim como a obra dramática, a montagem fez história. Para atender às exigências do texto, Santa Rosa criou um cenário formado por praticáveis que se intercomunicavam, onde ocorriam as cenas da alucinação, da memória e da realidade, que estabelecem as molduras nas quais a agonizante Alaíde, protagonista, desvenda ao público a história trágica do seu amor infeliz por Pedro, na qual tem como rival a irmã, Lucia. (...) Pelo que registram as crônicas da época da estreia, esse universo complexo ganhou de Ziembinski uma tradução cênica dinâmica, ativa, vigorosa. A iluminação, à qual o diretor dispensou especial cuidado, apresentou aos brasileiros um conceito moderno de luz teatral, movimentando-se de acordo com o desenrolar da história e da ocupação do espaço pelos atores (FARIA, 2013, p. 120).

Uma nova e mais elaborada maneira de construir cenários no Brasil se iniciava, principalmente pensando nas habilidades arquitetônicas da cenografia e, grandes cenários, como sabemos, impactam diretamente na recepção do espectador.
Na segunda metade do século XX uma importante questão surge para permear a produção teatral, referente à relação do espetáculo com o público. O que se questiona, especificamente, é qual a relação do espectador com o espetáculo?

Surge finalmente a afirmação de que é possível um outro modo de relacionar o espectador com o espetáculo, engajando o espectador no grande jogo da imaginação. Isso pressupõe uma outra relação estética, na qual a sugestão substitui a afirmação. A alusão ocupa o lugar da descrição, a elipse o da redundância. Esse desejo de engajar o espectador na realização dramática, até mesmo de comprometê-lo com ela, passou a nortear permanentemente as pesquisas do teatro moderno: as de Artaud entre as duas guerras, mas também as que predominaram a década de 1960, com as realizações do Living Theatre (Julian Beck e Judith Malina), do Teatro laboratório de Wroclaw (Grotowski), de Lucca Roncioni e de Ariane Mnouchkine, por mais diferentes que sejam, aliás, as bases teóricas que orientam cada um desses empreendimentos (ROUBINE, 1998, p. 39).
           
            A preocupação com a relação física do espetáculo com o espectador, num certo aspecto, tem a ver com a democratização do teatro. O teatro italiano representa o espelho de uma hierarquia social. Para tanto, o processo de democratização busca libertar o espetáculo do conforto estabelecido pela sala a italiana.
            Em São Paulo, a partir de 1948 com a criação do TBC[25] – Teatro Brasileiro de Comédia, os elementos visuais do espetáculo começam a se desenvolver e a cenografia na década de 50 começa a ser a protagonista de inúmeras montagens, pois começam a ser idealizadas sem restrições financeiras.
            1950 – Jean Vilar (1912 – 1971) assume a direção do Théâtre National Populaire, transformando as práticas e os costumes do teatro francês. Suas pesquisas terminam em limpar o palco italiano de todos os recursos que o aproximavam de uma caixinha mágica, eliminando o pano de boca, deixando que o público visse o palco antes mesmo do espetáculo começar, iluminado pela mesma luz do auditório. Historicamente não era um recurso novo, porém, a intenção era, de certa forma, mais uma vez, aproximar a cena do público, eliminando qualquer efeito de ilusão.

         Teatro de participação e de emoção, sem dúvida; mas, ao mesmo tempo, lugar de meditação e de interrogação. Por outro lado, Vilar, herdeiro de Copeau e discípulo de Dullin, considerou sempre que o texto deve ser o núcleo orgânico do espetáculo, ao qual todo o resto deve ficar subordinado. Assim sendo, a tradicional convenção frontal seria aos sues olhos a mais indicada para reunir as pessoas sem aluciná-las (ROUBINE, 1998, p. 99).

As tentativas de envolvimento e aproximação do espectador são cíclicas, voltam a ser experimentadas pelo uso de estratégicas especificas, principalmente pela relação espacial.
1958 – O Teatro de Arena[26] em São Paulo monta Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), trazendo a encenação para o centro da arena quadrada, palco do teatro, com espectadores acomodados nos quatro lados da encenação. A simplicidade da encenação e a ausência de recursos cênicos visuais de impacto foram compensados com a intimidade da representação, responsável pela topografia da cena, executada  muito próxima ao público presente.

         A encenação de José Renato foi, até aquele momento, a mais homogênea e de rendimento uniforme e satisfatório. E a recompensa supunha muitas dificuldades para transmitir a veracidade do texto, porque formavam o elenco atores inexperientes ou estrangeiros. Valorizou a montagem a maturidade, orientada no sentido do despojamento. [...] Em poucos trabalhos ele não revela a preocupação de inventar algo, para que sua presença ficasse marcada. Aqui, o encenador se libertou da sedução de impor os próprios achados e atingiu a autenticidade, por despir o conjunto de efeitos. Não seguiu, também a falsa pista do pitoresco no morro, despreocupando-se da tarefa quase impossível, na arena, de mostrar a cor local (MAGALDI, 1984, p. 53).

1960 – Jerzy Grotowski (1933 – 1999) avança na busca de aproximação entre o ator e o espectador, formulando sua teoria do Teatro Pobre[27], recusando a ajuda de qualquer maquinaria para tornar eficaz essas relação. Seus primeiros espetáculos Caim e Sakuntala, ainda mantém uma relação frontal com os espectadores, apesar das tentativas de mesclar os espaços da cena com o público. Porém, a integração torna-se completa em 1961, com Os antepassados, através da inserção dos espectadores dentro da cena, espalhados pelo espaço cênico ou área de representação. A pesquisa espacial continua nos próximos trabalhos, Kordian, por exemplo, cujo cenário é um hospício, foi dividido por camas de metal, compartilhadas por espectadores e atores, e Fausto, onde os espectadores ficavam sentados nos bancos das mesas que compunham o cenário, lado a lado com os atores, dentro do espaço de representação.

         Nos dois casos, a intimidade espacial e física da relação que se estabelece entre o espectador e o ator é reforçada pela integração do primeiro, não somente ao espaço, mas ao universo do espetáculo. Integração essa que nunca, sem dúvida, foi tão completa nos anais do teatro (ROUBINE, 1998, p. 103).

            Grotowski, libertou a encenação de todos os aparatos tecnológicos possibilitados pela caixa cênica, deixando a cena nua de tudo o que não era necessário para o trabalho do ator. Num certo sentido, ele realiza aquilo que já havia sido preconizado por Artaud e Brecht. Diante disso, podemos afirmar que as relações do espectador com o espetáculo se fortalecem a partir de outras aspirações que não as ilusões e os truques facilitados pelo palco italiano.
            1963 – Josef Svoboda (1920 – 2002), mestre da cenografia e da encenação Checa, encena Édipo Rei, de Sófocles, no Teatro Nacional de praga. Na formatação do espaço cênico, ele cria uma escada de quase dez metros de largura, com degraus semitransparentes, que se erguiam do fosso da orquestra até o urdimento do teatro. A relação da tecnologia com o teatro esteve sempre muito presente nas encenações de Svoboda.

Trabalhou nos maiores teatros do mundo, reunindo valores técnicos nos campos da óptica, da iluminação, da cinética cenográfica e dos novos meios para fazê-lo. Foi quem mais realizou os sonhos de Appia e Craig. Uniu ilusão e expressão, técnica e arte. Criou o Polyvision e o Diapolicran, sistemas para projetar imagens de maneira complexa e que uniam representação e representação pré-gravada (NERO, 2009, p. 269).

Svoboda, na contramão da simplicidade almejada por Grotowski, investe em grandes produções cenográficas. A cenografia sempre foi para ele um forte objeto de estudo no desenvolvimento da encenação.
1968 – Victor Garcia (1934 – 1982), um diretor argentino radicado no Brasil, monta o espetáculo Cemitério de Automóveis, unindo quatro textos do espanhol Fernando Arrabal (1932 -). A encenação acontece numa antiga garagem de automóveis, onde a plateia é acomodada em cadeiras giratórias, visualizando os 360 graus da encenação. Na cenografia estão carcaças de automóveis espalhas e empilhadas.
         O desempenho liberto da dicção realista, o desenvolvimento antipsicológico dos conflitos, a violência física e as evoluções acrobáticas punham diante de nós um universo inédito, cujos paralelos teóricos parecem irmanar-se ao ritual artaudiano ou mesmo grotowskiano. (...) Momento de suprema beleza visual, sintetizando simbolicamente o significado de A Primeira Comunhão: enquanto a avó solene e majestosa dava conselhos, a neta, respondendo apenas um 'sim mamãe', era paramentada em círculos concêntricos de diferentes tamanhos, até transformar-se em verdadeiro bolo de noiva. Era a primeira vez que se construía, à nossa frente, metáfora tão poderosa (MAGALDI, 2003, p. 217).

É também de 1968 uma montagem do Teatro Oficina[28], dirigido por José Celso Martinez Corrêa (1937 -), Galileu, Galilei, de Brechtt, eleita aqui, dentre outros, para ressaltar a importância e a estética cênica do Teatro Oficina nas décadas de 60 e 70.

Apelando para a via de conhecimento, efetivada em cena através da experiência concreta ao contrário daquela puramente intelectual, tornando a ação algo pessoal e palpável, o Oficina envereda por um percurso que, pouco a pouco, o levará ao happening. Galileu evidenciava mais uma vez o prestígio da equipe, tida como a mais ousada e esteticamente inquieta dentre os elencos nacionais (FARIA, 2013, p. 227).

O Teatro Oficina foi várias vezes reformado, abrigando vários formatos de encenações e relações com a plateia, passando do modelo de palco italiano para duas plateias laterais e, mais tarde, nos anos de 1980, para o formato “terreiro”, caracterizado pelo espaço a céu aberto com piso de terra batida, sem uma configuração fixa de plateia. Atualmente o formato do teatro é o de rua, com andaimes, lembrando um sambódromo. O projeto arquitetural foi de Lina Bo Bardi (1914 - 1922), em parceria com o José Celso e outros colaboradores. “Talvez o Oficina seja hoje nossa mais radical experiência em termos de arquitetura teatral, com uma vocação multimídia na qual os atores interagem com os mais variados recursos tecnológicos (SERRONI, 2013, p. 57).
1969 – Luca Ronconi (1933 – 2015) encena Orlando Furioso, libertando totalmente o espetáculo da tradição do teatro a italiana, apresentando-se para grandes plateias. Como no teatro medieval, as cenas eram apresentadas sobre carros que se movimentavam por entre a plateia, deixando os espectadores livres para se locomoverem por onde quisessem, arriscando-se entre os caros/cenários que se locomoviam em alta velocidade por todos os lados.  

No que diz respeito ao espectador, pode-se caracterizar da seguinte maneira o aspecto da relação que Ronconi determina através do seu espetáculo: antes de mais nada, a desorientação. O espaço não proporciona mais nenhuma zona especializada. Ao entrar, o espectador não encontra o seu lugar marcado. (...) O espetáculo nunca está lá onde é aguardado. Surge sempre nos lugares mais inesperados, ao longe, lá nas alturas, no nível das cabeças, no chão, tudo ao mesmo tempo. Outro elemento é o desconforto, em todas as suas formas. O espectador é constantemente acossado pelo espetáculo. Pelos carrinhos que passam raspando. Pelas agressões sonoras dos paroxismos da declamação. Pelas intervenções físicas dos atores, que lhe impõem e orientam os deslocamentos (ROUBINE, 1998, p. 108).

            Também em 1969, em São Paulo, no teatro Ruth Escobar, o diretor Victor Garcia continua suas provocações espaciais, na relação com a plateia, montando O Balcão, de Jean Genet (1910 – 1986), repercutindo internacionalmente pela ousadia da montagem, aliando a tecnologia, engenharia e a arquitetura. Segundo o cenógrafo J. C. Serroni (1950 -), foi a experiência mais audaciosa em termos de cenografia já realizada no Brasil.

O cenógrafo Wladimir Pereira Cardoso transformou o espaço do teatro em um buraco de cerca de vinte metros de profundidade e alí construiu o cenário/teatro. Nesse espaço, foi erigida uma estrutura metálica que sustentava tanto os atores como o público. A passarela metálica em forma de espiral subia do piso ao teto, abrigando a movimentação dos atores. Na cena dos revolucionários, parte da estrutura se movia levando junto o público, sentado ao redor em vários níveis circulares. Essa movimentação se dava por motores que faziam com que a estrutura se abrisse em duas partes distanciando algum momento a cena do público, que podia vê-la de forma mais ampla, mais aberta. O teatro, no entanto, continuou intacto, sendo possível seu uso normalmente, como vinha sendo feito antes da montagem da peça (SERRONI, 2013, p. 52).

O teatro, finalmente, no Brasil e no mundo, resgatando ideias do passado ou inovando em alguns aspectos, propõe outras espacialidades que não aquelas já conhecidas durante os últimos 100 anos e, enfim, conseguimos avançar quanto ao uso do espaço na encenação.
A partir da década de 1970, sobretudo, conforme afirma Hans-Thies Lehmann (1944-), intensifica uma prática de teatro que vai além da reprodução do mundo, da ilusão cênica e que se constrói sobre territórios miscigenados entre as artes visuais, a dança, o cinema, o vídeo, a performance, ou seja, híbrido no que se refere ao uso das diferentes mídias. Lehmann vai nomear essa tendência do teatro nas últimas décadas do século XX como o teatro pós dramático, ou seja, um novo teatro que começa com o desaparecimento do triângulo drama, ação, imitação (GUINSBURG e FERNANDES, 2009, p. 13). Não é a ausência do texto dramático que configura essa nova possibilidade de teatro, segundo Lehmann, mas o uso que a encenação faz dos textos dramáticos. O teatro pós dramático se caracteriza assim, principalmente, pelo uso que faz de todos os elementos cênicos, onde qualquer significante pode ser tomado como elemento dramatúrgico, por exemplo, desprivilegiando a supremacia do texto escrito.
1971 – Ronconi continua sua pesquisa sobre o espaço cênico e encena XX, uma composição de 24 pequenas peças, separadas uma das outras por finas paredes divisórias. Em cada um dos compartimentos, cada ator enfrenta 24 espectadores selecionados. Os atores transitam de um espaço para o outro, intercalando-se, mas mantendo inicialmente esse formato de 1 para 24. No decorrer do espetáculo, as paredes vão caindo, aumentando o número de atores e espectadores, sucessivamente, compartilhando as cenas. No final do espetáculo, cada espectador passou por uma experiência única, possibilitada pela sequencia de cenas que viu ou pelo seu posicionamento em cada momento do espetáculo, ressignificando a dramaturgia através dos recortes apresentados. Novamente o mal estar estava presente, pelos ruídos que chegavam das cenas vizinhas e pela impossibilidade de compreender o que se desenrola nos outros compartimentos, captando apenas de forma fragmentadas os resquícios que sobravam dos acontecimentos.

Concebida desse modo, a relação do espectador com o espetáculo é ambígua. Ela se baseia, por um lado, na proximidade, talvez até na participação (alguns espectadores podem ser convidados a participar de uma determinada ação; os atores dirigem-se diretamente ao público). (...) A proximidade duplica o sentimento de estranheza que o invade. Não consegue mais retomar integralmente a sua identidade de espectador de teatro, mas não se sente tãopouco fazendo parte de um grande jogo. Tem a sensação de estar sobrando. De estar assistindo pelo buraco da fechadura a uma espécie de psicodrama que a sua simples presença ameaça perturbar (ROUBINE, 1998, p. 111).

            Também em 1971, na França, Ariane Monouchkine (1939 - ) vai no mesmo sentido de Ronconi. Montam 1789, um espetáculo para grandes plateias, que segue acompanhando em pé a duração da peça. Nesse sentido, aproxima se de Orlando Furioso. Cada espectador poderia evoluir como desejasse no espaço cênico, livremente, orientados pela distribuição sonora e visual do espetáculo. Cinco áreas de representação foram montadas em um grande galpão do subúrbio parisiense, unidos por passarelas e todo o espaço criado era compartilhado por atores e espectadores (ROUBINE, 1998, p. 114).
            Neste mesmo ano, Ivan de Albuquerque (1932 – 2001) encena no Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro, Hoje é dia de Rock de José Vicente (1945 – 2007). O espaço cênico, em formato de passarela, com plateia dos dois lados, foi proposto por Luis Carlos Rípper, onde os atores recebiam o público com pão e flores, envolvendo-os na encenação (FARIA, 2013, p.234). Novamente, uma relação de proximidade foi estabelecida.
            1972 – Celso Nunes (1941 - ) encena A Viagem com cenografia de Hélio Eichbauer (1941 – 2018) e propõe que a plateia faça um percurso, deslocando se pelas dependências do teatro. Os espectadores eram recebidos pelos atores/personagens já na entrada do teatro, quando eram encaminhados para o porão do teatro, lugar onde aconteciam as primeiras cenas. Depois, eram encaminhados para o palco principal, onde aconteciam as principais cenas, dispostas em passarelas que contornavam o público e nos praticáveis de acrílico sobre as cabeças dos espectadores (SERRONI, 2013, p. 53).
O Théatre du Solei segue experimentando pela década de 1970 outras topografias extra caixa cênica do palco italiano. Cria quatro espaços cênicos diferentes dentro de um galpão para encenar L´age d´or, em 1976, experimentando distâncias bem próximas com os espectadores e uma ambiência em todo galpão, criada pela iluminação, vinda, inclusive, da parte externa, através das janelas. 
            Segundo as referências pesquisadas, o teatro oferece nessa segunda metade do século XX uma variedade de possibilidades quanto a abordagens dos espaços cênicos. A experiência teatral pôde ser, novamente, para os espectadores uma aventura intensa.

Com Grotowski, Ronconi, Mnouchkine e muitos outros que lamentamos não poder enumerar aqui, o teatro liberta-se de suas amarras. O espaço teatral torna-se, ou volta a ser, uma estrutura completamente flexível e transformável de uma montagem para outra, quer se trate das áreas de representação ou das zonas reservadas ao público. Agora o teatro pode ser feito em qualquer lugar – de preferência evitando-se aquelas construções a que se costuma dar o nome de teatros (ROUBINE, 1998, p. 117).

            1974 – Uma experiência visceral é vivida pelos espectadores de SOMMA ou Os Melhores Anos de Nossas Vidas, encenada pelo grupo de Niterói, com direção de Amir Haddad (1937 -) no Rio de Janeiro. A encenação rompia relação palco-plateia, misturava espectadores e atores no espaço de representação, palco e camarins. As cenas preparadas poderiam ou não acontecer, segundo a fluidez de cada apresentação. De tão perturbador, o espetáculo foi censurado após 15 apresentações. “Não há marcações de cenas nem texto linear, sendo o espetáculo uma colagem de criações anteriores da equipe, em forte apelo ao Happening” (FARIA, 2013, p. 237).
            1976 – No teatro Treze de Maio, em São Paulo, foi encenada a peça Pano de Boca, uma montagem que alterava também a estrutura do espaço cênico pela cenografia. O teto do teatro foi todo forrado com composições em tecidos e, na plateia, foram colocados espelhos que alteravam as dimensões do espaço, tanto da plateia, quanto do palco.
            Podemos imaginar que esse tipo de teatro, investindo nas relações espaciais, experimental por assim dizer, ainda não era destinado à uma plateia elitizada, do ponto de vista econômico. Tal plateia sempre esteve acostumada com o conforto do teatro italiano. As propostas de espetáculos com encenações mais experimentais, pelo menos no Brasil, de certa forma, sempre foram apreciadas por uma plateia mais especializada, normalmente composta por artistas ou estudantes das mais variadas expressões artísticas, espectadores dispostos a experimentar outros formatos, nem sempre tão confortáveis e tranquilos como um teatro italiano poderia oferecer para o público.
            1977 – O diretor Aderbal Freira Filho (1941) propõe uma encenação altamente experimental para o espetáculo Morte de Danton, realizada nas galerias do metrô em construção no Rio de Janeiro, registrando que a ocupação de espaços não convencionais, para o teatro, já veem sendo realizadas há muito tempo no Brasil.
1980 - Tadeusz Kantor (1915 – 1990) monta Wielopole, Wielopole e talvez seja, segundo Lehmann, “o primeiro encenador moderno a destruir os paradigmas do teatro dramático, graças a uma verdadeira mimese estruturada da guerra, inédita na assimilação de tema e forma (GUINSBURG e FERNANDES, 2009, p. 18). Na peça, toda a cenografia foi construída para ser manipulada pelos atores. Sua materialidade consistiu na mistura de materiais, conferindo à plasticidade uma textura de memória, antiga, quase que em ruínas. Janelas e portas possuiam rodas. Os elementos cenográficos estavam em cena não para serem utilizados de forma convencional, ao contrário, estavam ali para serem ressignificados, como uma porta que levava para lugar nenhum e não retirava os atores de cena, por exemplo.  O personagem do autor, isto é, o próprio Kantor estava presente na cena, manipulando atores e objetos cênicos, nesta montagem quase que biográfica, misturando passado e presente, personagens reais e representações fictícias, misturando memória, vida e morte.

Lehmann enfatiza a forma insistente com que Kantor gravita em torno das lembranças da infância que, assimiladas à vivência das duas guerras mundiais, criam em cena uma estrutura temporal de lembrança, repetição e confronto contínuo com a perda e a morte. Seu teatro é uma “cerimônia fúnebre de aniquilação tragicômica do sentido” (GUINSBURG e FERNANDES, 2009, p. 20).

No Brasil os anos da década de 1980 foram responsáveis pelo desenvolvimento visual dos espetáculos. Um alinhamento dos elementos visuais desencadeou numa prática colaborativa entre os diferentes artistas, valorizando figurinistas, cenógrafos, maquiadores e iluminadores. Esse movimento de valorização da visualidade vai reforçar a plasticidade da cena, desenvolvida com maturidade nos seguintes anos 90 e coroar, como Lehmann define, o teatro pós dramático. A cenografia brasileira ganha destaque com os cenógrafos e diretores da década de 1980 e 1990, ocupando o palco italiano na maioria das vezes.
1986 – A companhia de teatro Ópera seca, dirigida por Gerald Thomas (1954), encena Eletra com Creta, com cenografia que dividia o palco lateralmente em três corredores, construídos por telas transparentes, criada por Daniela Thomas (1959). O espaço criado, permitia uma simultaneidade de planos. A iluminação fazia aparecer e desaparecer personagens. Essa combinação de cenografia, iluminação, figurinos, fumaça e demais elementos que surgiam, aliadas aos conteúdos dramatúrgicos, fizeram de Gerald Thomas o nosso encenador pós dramático de maior representatividade.

 Na verdade, o que Thomas estreava no Brasil era uma tendência presente na cena mundial, especialmente na americana, pelo menos desde meados da década de 70. Com maior ou menor grau de afinidade, ele se aproxima da linha de trabalho dos encenadores Richard Foreman e Bob Wilson, dos grupos Mabou mines e Wooster, das performes Meredith Monk e Lucinda Childs. O que todos tinham em comum era a exploração auto-reflexiva da linguagem formal das artes cênicas. Centravam o interesse em experimentações radicais de tempo e espaço e punham em xeque métodos mais tradicionais de criar o teatro. Não havia texto dramático, personagens definidas, conflito teatral, nem cenário, no sentido de um lugar onde o espetáculo se localiza. O espaço cênico era o próprio teatro e a progressão da narrativa acontecia através da mudança de temas espaciais, que se repetiam no decorrer do espetáculo. Eletra com Creta, que estreou em 1986, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, era uma espécie de partitura formada por quatro telas de filó, nos quais Thomas inscrevia seu texto cênico (FERNANDES e GUINSBURG, 1996, p. 12).

1992 – A montagem de Viagem ao centro da terra, de Júlio Verne, dirigida por Ricardo Karman, num túnel abandonado do Rio Pinheiros em São Paulo, propõe uma das maiores aventuras ao público de teatro. Tratava se de uma montagem sensorial, multimídia, misturando teatro, artes visuais, performance e vídeos. Era o espetáculo ocupando os espaços urbanos, não convencionais, inusitados. Essa montagem tornou-se um ícone dos anos 90 e influenciou toda uma geração de artistas e encenadores no Brasil, sobretudo com relação ao uso do espaço real na cena contemporânea. Olhando para a produção teatral brasileira dos anos 1990, a crítica Mariangela Alves de Lima analisa:

Anômalo, circunscrito a São Paulo, é o diretor Ricardo Karman que criou duas obras autorais de extraordinária dimensão física e estética. [...] Atribuindo um propósito cenográfico às mais agressivas formas urbanas - a violentação de um rio, o lixo, a ruína - os espetáculos de Karman incitavam a uma relação transformadora com o espaço da cidade (LIMA, 1998, p. 35).

1995 – Klaus Michael Grüber (1941 – 2008) encena na Alemanha Mãe Pálida, Irmã Frágil, onde, nesse trabalho e nos dois anteriores, ele transforma o espaço como o próprio protagonista, assemelhando-se aos brasileiros do Teatro da Vertigem[29] que também escolhem espaços públicos para protagonizar suas montagens (GUINSBURG e FERNANDES, 2009, p. 22).
No mesmo ano, no Brasil, o Teatro da Vertigem em São Paulo, dirigido por Antônio Araujo, estreia o espetáculo O Livro de Jó. Esse foi o segundo espetáculo da Trilogia Bíblica e foi apresentado num hospital abandonado. O primeiro chamava-se Paraíso perdido, apresentando em 1992 na Igreja de Santa Ifigênia, e o terceiro foi Apocalipse I, II, em 2000 num presídio desativado, ambos com cenografia de Marcos Pedroso (1965).
No final do século XX o teatro ocupa diferentes espaços urbanos, ressignificando os espaços ao mesmo tempo em que a espacialidade da cena ganha uma textura real, com a memória do tempo. Trata-se de antigos prédios abandonados ou não, pátios de instituições, igrejas e outras espacialidades urbanas como as próprias ruas das cidades. Podemos dizer que a própria dramaturgia passa a ser desenvolvida a partir da ocupação desses espaços e do contexto social e político que eles carregam e imprimem.

Isso levou à busca pela criação de espaços teatrais em prisões, armazéns, cozinhas públicas ou fábricas antigas. Frequentemente, a mudança de uso do edifício é profundamente irônica. Locais de penitência no passado se tornam locais de prazer, e sombrias cavernas industriais, falidas e supérfluas há muito tempo, ganham uma nova vida como templos da arte. Em vez de um ponto fixo, o palco pode ser posicionado na parte mais adequada do espaço refeito do auditório, a fim de proporcionar o melhor relacionamento possível entre os intérpretes e seus espectadores (HOWARD, 2015, p. 33).


REFERÊNCIAS
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2006.
FARIA, João Roberto. História do Teatro Brasileiro – Volume I: Das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo: Perspectiva: Edições Sesc, 2012.
FARIA, João Roberto. História do Teatro Brasileiro – Volume II: Do modernismo às tendências contemporâneas. São Paulo: Perspectiva: Edições Sesc, 2013.
FERNANDES, Silvia e GUINSBURG, J. (orgs.). Um encenador de sí mesmo: Gerald Thomas. São Paulo: Perspectiva, 1996.
GUINSBURG, J. e FERNANDES, Silvia (orgs.). O Pós Dramático. São Paulo: Perspectiva, 2009.
HOWARD, Pamela. O que é cenografia? Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2015.
LEVI, Clovis. Teatro brasileiro: um panorama do século XX. São Paulo e Rio de Janeiro: Funarte e Atração Produções Ilimitadas, 1997.
LIMA, Mariângela Alves de. O teatro paulista in Sete Palcos - Cena Lusófona, nº 3, setembro de 1998.
MAGALDI, Sábato. Um palco brasileiro: o Arena em São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1984.
MAGALDI, Sábato. Depois do espetáculo. São Paulo: Perspectiva, 2003.
NERO, Cyro Del. Maquina para os deuses: Anotações de um cenógrafo e o discurso da cenografia. São Paulo: Editora Senac: Edições Sesc, 2009.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.
RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia: Variações sobre o mesmo tema. São Paulo: Editora Senac, 1999.
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.
SCHEFFLER, Ismael. Alfred Jarry: O dramaturgo da cena. Anais - VI Fórum de pesquisa científica em artes. Curitiba: Escola de Música e Belas Artes do Paraná, 2009.
SERRONI, José Carlos. Cenografia brasileira: Notas de um cenógrafo. São Paulo: Edições Sesc, 2013).
VASCONCELLOS, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro. São Paulo: L&PM Editores, 1987.

NOTAS

[1]A skênographia é, para os gregos, a arte de adornar o teatro e a decoração de pintura que resulta desta técnica. No Renascimento, a cenografia é a técnica que consiste em desenhar e pintar uma tela de fundo em perspectiva. No sentido moderno, é a ciência e a arte da organização do palco e do espaço teatral. É também, por metonímia, o próprio desejo, aquilo que resulta do trabalho do cenógrafo. Hoje a palavra impõe-se cada vez mais em lugar de decoração, para ultrapassar a noção de ornamentação e de embalagem que ainda se prende, muitas vezes, à concepção obsoleta do teatro como decoração. A cenografia marca bem seu desejo de ser uma escritura no espaço tridimensional (ao qual seria mesmo preciso acrescentar a dimensão temporal), e não mais uma arte pictórica da tela pintada, como o teatro se contentou até o naturalismo. A cena teatral não poderia ser considerada como materialização de problemáticas indicações cênicas: ela se recusa a desempenhar o papel de “simples figurante” com relação a um texto preexistente e determinante” (PAVIS, 2005, p. 44).
[2]A noção de encenação é recente; ela data apenas da segunda metade do século XIX e o emprego da palavra remonta a 1820. É nessa época que o encenador passa a ser o responsável oficial pela ordenação do espetáculo. (...) A encenação se assemelhava a uma técnica rudimentar de marcação dos atores. Esta concepção prevalece às vezes entre o grande público, para quem o encenador só teria que regulamentar os movimentos dos atores e das luzes” (PAVIS, 2005, p. 122).
[3]Arte de executar projetos cenográficos. Planejamento e coordenação dos serviços de construção e montagem dos cenários. Engenharia cenográfica” (NERO, 2009, p. 334).
[4] “Em termos gerais, nome dado à parte da caixa do teatro localizada acima do palco. Especificamente, grade de madeiramento resistente que se estende sobre toda a área do palco, acima deste, e que serve de apoio para toda operação de funcionamento dos efeitos cênicos” (VASCONCELLOS, 1987, p. 214).
[5] “Painéis móveis feitos em madeira leve e revestidos de tecido preto esticado, geralmente de cor preta, que é colocado nas partes laterais do palco. Possuem duas funções básicas: delimitar o espaço cênico e esconder da vista do público tudo o que não faz parte da cena. Os bastidores, conjugados às bambolinas, formam uma sequência de molduras que acompanham, em perspectiva, no sentido frente-fundo, a boca de cena” (VASCONCELLOS, 1987, p. 28).
[6] “Conjuntos de cordas que pende do urdimento e que serve para sustentar as varas onde são fixadas as peças do cenário ou o equipamento de iluminação” (VASCONCELLOS, 1987, p. 120).
[7] “Discos móveis em um eixo fixo, com a borda canelada, por onde passa uma corda ou um fio; polia; rolete” (NERO, 2009, p. 351).
[8] “Pesos que, suspensos por um gorne do urdimento, sustenta um elemento cenográfico de idêntico peso, assim o contrabalanço” (NERO, 2009, p. 335).
[9] A mais célebre das poéticas, a de Aristóteles (330 a.C.), se baseia sobretudo no teatro: na definição da tragédia, nas causas e consequências da catarse e em inúmeras outras prescrições correntes nas artes poéticas. No entanto, a poética ultrapassa amplamente o domínio teatral e se interessa por muitos outros gêneros além do teatro (pela poesia em geral). Se as regras e normas são particularmente numerosas e precisas no caso do teatro, arte necessariamente pública e portanto regulamentada com rigor, todas essas regulamentações escondem ou desestimulam uma reflexão global, descritiva e estrutural sobre o funcionamento textual e cênico. Eis porque a ciência da literatura e a semiologia, hoje, lançaram-se a essa empreitada universal e titânica, procurando velar por duas exigências: primeiro, ultrapassar as particularidades de um autor ou uma escola, não ditar normas para decidir o que o teatro deva ser; em segundo lugar, apreender o teatro como arte cênica (quando as poéticas anteriores a Artaud e Brecht privilegiavam muito o texto) (PAVIS, 2005, p. 295).
[10] Na arquitetura teatral, nome dado à área destinada à realização do espetáculo. A caixa é dividida em dois espaços básicos, o espaço cênico, ou cena, que é a parte visível para o público, e o espaço fora de cena, não visível para o espectador. A caixa inclui, no sentido vertical, o urdimento e o porão. Quanto maior e mais bem equipada for a caixa do teatro, maiores e melhores serão suas possibilidades cênicas (VASCONCELLOS, 1987, p. 34).
[11] “Nos teatros com palco italiano, a parte do palco localizada entre a boca de cena e a plateia. No antigo teatro grego, o proscênio (proskénion) era a parte mais importante do palco, uma vez que ali ocorria praticamente toda a representação. Com a evolução arquitetônica que desembocou na criação da boca de cena, a área da cena propriamente dita passou a abrigar todo o espetáculo, perdendo então o proscênio a sua importância. No século XX, devido a técnicas e teorias que revalorizavam a relação direta entre o ator e o espectador, como o distanciamento, o proscênio passou a ser visto novamente como um espaço cênico importante” (VASCONCELLOS, 1987, p. 162).
[12] “Poço na frente do palco onde se colocam os músicos da orquestra. Muitas vezes o fosso da orquestra é levadiço, trazendo a orquestra até o nível do palco” (NERO, 2009, p. 341).
[13] “Cada um dos pranchões que formam o piso do palco, e que podem ser removidos um a um. Em geral medem 1m x 2m. Seu lado maior é sempre disposto para a plateia. Em alguns teatros, cada quartelada pode ser elevada acima do palco ou baixada para o porão. As quarteladas são construídas para não empenar. A primeira vez que foram montadas sobre um sistema hidráulico de elevação foi em 1884, em Budapeste, e a isso se chamou asfaleia (do grego “segurança”, “estabilidade”)” (NERO, 2009, p. 350).
[14] “Nos grandes teatros de ópera construídos a partir do século XVIII, o chão do palco era subdividido em sessões que, movimentadas do porão, subiam e desciam independentes umas das outras, formando degraus ou outros desníveis necessários ao cenário” (VASCONCELLOS, 1987, p. 79).
[15] “Termo cunhado por André Antoine para designar a parede imaginária situada na altura do arco do proscênio, separando o palco da plateia. A quarta parede constitui uma convenção do naturalismo no teatro, e sua prática exigiu o desenvolvimento de uma técnica de interpretação em que o ator simula, através de seu comportamento, a continuidade do cenário através dos quatro lados do palco. Em consequência, o ator representa ignorando a presença do espectador diante dele. Antonie, na sua incansável busca de um grau cada vez maior de naturalismo no palco, costumava usar peças de mobiliário contra a quarta parede, ou seja, entre os atores e o público. Para ele, “um interior deve ser construído com seus quatro lados, com suas quatro paredes, sem preocupações a respeito da quarta parede, que será removida mais tarde, permitindo que o público veja o que ali acontece”” (VASCONCELLOS, 1987, p. 164).
[16] “Plataforma giratória pertencente ao piso de um palco ou montada provisoriamente sobre ele. Permite rápidas mudanças de cenários pré montados. Leonardo Da Vinci desenhou um palco giratório em Milão, em 1490. O teatro kabuki (japonês) usa-o regularmente desde 1658. Foi introduzido modernamente em Munique, em 1896, para a encenação de Don Giovanni, de Mozart. Max Reinhardt usou-o para Sonho de uma noite de verão, de Shekespeare, fazendo todo o bosque girar lentamente. O cenógrafo Júlio Prieto (México), para Mefistófeles, de Boitto, usou como cenário da montanha cônica construída sobre um palco giratório. Os atores subiam a montanha, que girava ao contrário de seus passos, ficando assim, sempre no cento do palco” (NERO, 2009, p. 345).
[17] “Grande telão circular no fundo do palco, em geral de cor clara, bem esticado em estrutura cambotada de madeira ou canos de ferro em curva. O ciclorama pode ser gradualmente iluminado por dimmers, à vista do público, ou pode receber efeitos projetados sobre ele. Chama-se também panorama quando construído em alvenaria; ou, dependendo de sua esfericidade, esfera de horizonte” (NERO, 2009, p. 335).
[18] “Abertura que emoldura a visão do palco e que se encontra exatamente entre este e a plateia. Esse lado do palco, aberto, chama-se também quarta parede, a parede ausente” (NERO, 2009, p. 332).
[19] “O teatro de câmara, como a música de câmara (expressão na qual o termo é calcado), é uma forma de representação e de dramaturgia que limita os meios de expressão cênicos, o número de atores e de espectadores, a amplitude dos temas abordados” (PAVIS, 2005, p. 381).
[20] “Um empreendimento privado dirigido por Stanislávski e Dantchenko em Moscou. (...) Inaugurado com o drama histórico Czar Fiodor Ivanovitch em 14 de outubro de 1898. Os principais artistas que se relacionaram com o teatro foram Tchékhov, Górki, Meierhold, Vakhtângov e Taírov. O trabalho realizado pelo Teatro de Arte de Moscou foi reconhecido internacionalmente” (BERTHOLD, 2006, p. 464).
[21] Ribalta: “Equipamento de iluminação que consiste numa fileira de luzes, localizadas nas bordas do proscênio. Sua finalidade era a de iluminar, de baixo para cima, o rosto dos atores. Hoje, encontra-se praticamente em desuso” (VASCONCELLOS, 1987, p. 169).
[22] “Expressão forjada por Antonin Ataud (1938) para um projeto de representação que faz com que o espectador seja submetido a um tratamento de choque emotivo, de maneira a libertá-lo do domínio do pensamento discursivo e lógico para encontrar uma vivência imediata, uma nova catarse e uma experiência estética e ética original. O teatro da crueldade nada tem a ver, entretanto, pelo menos em Artaud, com uma violência diretamente física imposta ao ator ou ao espectador. O texto é proferido numa espécie de encantamento ritual (em vez de ser dito em cima do modo da interpretação psicológica). O palco todo é usado como num ritual e enquanto produtor de imagens (hieróglifos) que se dirigem ao inconsciente do espectador: ele recorre aos mais diversos meios de expressão artísticos. Muitas companhias se valem hoje desta estética da crueldade” (PAVIS, 2005, p. 377).
[23] Tipos de cenários que reproduzem o interior de uma casa. O cenário de gabinete é estruturado em painéis, o que permite, com um certo número de módulos, a construção de diferentes ambientes. O gabinete inclui, obrigatoriamente, as paredes cegas, as paredes com aberturas e o teto (VASCONCELLOS, 1987, p. 95).
[24] “Filha direta das revistas francesa e portuguesa, a revista brasileira tinha como tema principal a vida na corte e a seguir, com a chegada da República, a vida na capital federal. Era sempre uma crítica divertida sobre os acontecimentos, personagens e locais do Rio de Janeiro. Fazia sucesso: era musical, cheia de humor, criticava a política, falava de personagens conhecidos e também colocava no palco o nosso cotidiano, permitindo que a plateia se reconhecesse através de tipos populares, com maior realce para a mulata e o malandro” (LEVI, 1997, p. 15).
[25] O TBC se tornou um polo de produção de teatro em moldes inéditos na história do país e em tais condições foi influência decisiva para tudo o que acontecia a sua volta e na posteridade. (...) Para a historiografia tradicional, o TBC foi o grande centro do teatro moderno, afirmação que tende a se tornar cada vez mais discutível. (...) Ao longo desse percurso, o TBC instaurou um conceito de teatro como carpintaria, artesanato e requinte, formou profissionais de diversas especializações teatrais (e não por acaso abrigou em seu prédio a Escola de Arte Dramática fundada por Alfredo mesquita, a primeira escola de teatro moderna do país), lançou cenógrafos, diretores, figurinistas, formou a primeira geração de diretores nacionais, dignificou a profissão no teatro a partir de condições trabalhistas decentes (FARIA, 2013, p. 88, 89 e 90).
[26] O teatro de Arena de são Paulo, fundado em 1953, surgiu como alternativa para o enfrentamento de pressões econômicas que pesavam sobre a esfera de produção no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A iniciativa partiu de Renato Pécora (1926-2011), jovem diretor recém formado pela Escola de Arte Dramática (EAD), e teve como inspiração a estrutura norte americana de teatro sem proscênio, no qual a área de encenação é circular, central e circundada pelos assentos destinados ao público (FARIA, 2013, p. 175).
[27] “Termo forjado por Grotowski (1971) para qualificar seu estilo de encenação baseado numa extrema economia de recursos cênicos (cenários, acessórios, figurinos) e preenchendo esse vazio por uma grande intensidade de atuação e um aprofundamento da relação ator/espectador” (PAVIS, 2005, p. 393).
[28] “Uma nova equipe acadêmica, liderada por José Celso Martinez Corrêa. (...) O Teatro Oficina opta por autores norte americanos e russos, tentando não deslindar os vínculos existentes que interligavam seus integrantes ao produto artístico oferecido, num movimento que possui tanto de experiência de vida quanto de sensibilidade artística locada nas escolhas. Ao optar pela profissionalização em 1960, o novo grupo reformou uma antiga sala de espetáculos, transformando-as em arena de dupla face, seguindo as pegadas do Arena (FARIA, 2013, p. 221).
[29] “O Teatro da Vertigem tem em seu trabalho vários elementos pós dramáticos: a relação com o espaço e a sua significação hiper realista; a justaposição entre ficção e não ficção; a relação com o público, que vai se tornando, espetáculo a espetáculo, cada vez mais direta, dinâmica e dialógica; a multiplicidade e o impacto das imagens na escritura cênica; a estrutura fragmentada e multifacetada e a heterogeneidade de estilos, existentes principalmente em Apocalipse 1,11; e finalmente, a força do processo de criação presente nos espetáculos. A Trilogia Bíblica forma uma obra cênica tão coerente que, em mais de dez anos, constrói uma reflexão profunda e continuada sobre a fé no mundo contemporâneo. Seu percurso vai do sagrado ao profano, do questionamento do divino à divindade do humano. No fim, as grades da prisão se abrem e saímos por um túnel rumo à rua, vivos enfim” (GUINSBURG e FERNANDES, 2009, p. 161).