domingo, 10 de maio de 2020

CORPO E ESPAÇO EM MERLEAU-PONTY: UMA INTRODUÇÃO

Paulo Vinícius Alves
Este texto foi escrito durante a minha pesquisa de Mestrado em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná 


O presente texto veio para esclarecer o entendimento de Merleau-Ponty sobre o Corpo e o Espaço, dois conceitos muito importantes do filósofo, para o desenvolvimento e entendimento da minha pesquisa no Mestrado em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná / PUCPR. Para tanto, fez-se necessário a abordagem prévia de como Ponty entende a Fenomenologia e como propõe o conceito de percepção.
Em Fenomenologia da Percepção (1945)[1], Merleau-Ponty traz o corpo para o primeiro plano de reflexão, revelando o modo pelo qual o homem conhece o mundo e a si mesmo. Trata-se de uma relação, ou seja, a percepção não está apenas na oconsciência do sujeito (abordagem intelectualista) e nem tão pouco apenas no objeto observado (abordagem empirista). Neste sentido, a concepção fenomenológica da intencionalidade[2] indica que o sentido da percepção não está em um dos polos isoladamente, mas na relação que se estrutura entre eles. Esta relação, como demonstra Merleau-Ponty, é mediada pelo corpo do sujeito, pois, “o corpo é nosso meio geral de ter um mundo” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 203).
A percepção, tal como Merleau-Ponty conceitua, é de extrema importância para esta pesquisa na medida em que “a percepção não é aquilo que pensamos, mas aquilo que vivemos, uma vez que estamos abertos ao mundo e comunicamo-nos indubitavelmente com ele pelo nosso corpo” (GOLÇALVES; SILVA; CARDOS; BERESFORD, 2010, p. 82). Dessa maneira, toda experiência é vivida sob o pano de fundo do mundo e, nesse sentido, existe muitas interpretações sobre este mundo, espaço pelo qual cada sujeito vivencia suas relações de aprendizagem e formulações de conceitos a partir daquilo que já existia no mundo; lugares e objetos. O mundo, portanto, é o lugar do encontro, onde o sujeito reencontra os objetos que construíram o seu próprio mundo.
A filosofia de Merleau-Ponty pode ser considerada como uma reflexão sobre a experiência humana, sobre o corpo, a percepção, o mundo, a consciência e a subjetividade. Os comentadores trazidos para esta pesquisa darão o suporte necessário para o esclarecimento das proposições de Merleau-Ponty, como, por exemplo, o entendimento do corpo como referencia espacial:

O corpo é a principal referência espacial e o espaço deve ser compreendido não só a partir dele, mas também como uma extensão do próprio corpo, em uma compreensão femenológica, apoiada na experiência corporal e vivencial. Trata-se de ver o espaço como um estado de uma situação em constante mudança, na qual o indivíduo sabe onde está seu corpo e as partes que o compõem, por um saber absoluto (GOLÇALVES; SILVA; CARLOS; BERESFORD, 2010, p. 83).

Para ele, a fenomenologia enquanto método segue as mesmas características da filosofia, ou seja, busca definir a essência das coisas. Porém, além do sentido essencialista, a fenomenologia, recoloca a essência na existência, pois só neste campo as coisas poderão existir tais como elas são, isto é, na medida em que eu me deparo com os fenômenos do mundo e isto só é possível enquanto existência. Neste sentido,

Merleau-Ponty afirma que a experiência do sujeito é um campo aberto a possibilidades, pois o corpo próprio tem consciência de si mesmo, não como consciência pura, mas como experiência, e habitando o espaço, experimentando sua própria existência, é capaz de perceber o mundo através de perspectivas (FIGUEIREDO, 2015, p. 12)

A abordagem de Merleau-Ponty para a Fenomenologia insere-se num lugar diferente da concepção científica, onde a identificação da realidade era feita pelos objetos construídos pela ciência, caindo no objetivismo. Nesse sentido,

a ciência manipula as coisas e renuncia habitá-las. Estabelece modelos internos delas e, operando sobre esses índices ou variáveis as transformações permitidas por sua definição, só de longe se confronta com o mundo real (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 15).

            O sujeito vive o seu próprio mundo, deve ser fonte absoluta de seus próprios movimentos e pensamentos. A experiência não é proveniente dos seus antecessores, não decorre de uma experiência anterior ou de outro ser humano que perceba, isto é, o sujeito é quem escolhe os horizontes da sua própria experiência. A ciência, para Merleau-Ponty, seria uma criação humana, não podendo ser a única forma de pensar a existência do mundo e a nossa própria existência. Portanto, a “maneira mais fundamental de compreender a nós mesmos não pode ser a maneira objetiva da ciência: como um tipo especifico de objeto no mundo a ser explicado de fora” (MATTHEWS, 2010, p. 26).
A abordagem de Merleau-Ponty para a Fenomenologia também insere-se num lugar diferente da concepção clássica filosófica, que identificava a realidade com as ideias postas pelo sujeito do conhecimento, resultando, portanto, no subjetivismo. Merleau-Ponty disse que não somos uma consciência cognitiva pura, pois, nós, seres humanos, somos uma consciência encarnada num corpo. Portanto, nosso corpo humano não é apenas algo físico e mecânico como descrito pela ciência. Temos um corpo que é habitado e animado por uma consciência. O sujeito é algo entre um corpo e uma consciência. Para Merleau-Ponty somos seres temporais, porque nascemos e temos consciência do nascimento e da morte. Temos consciência da história e fazemos a história, neste sentido somos tempo, pois, o tempo existe porque nós existimos. O sujeito também é um ser espacial, pois para nós o mundo é feito de lugares e de distâncias. O corpo do ser humano é uma coisa entre outras coisas, um ser visível e vidente, porque somos vistos e também podemos ver, podemos, sobretudo, “nos ver e nos ver vendo e, neste sentido há uma interioridade na visão”. O corpo humano é um ser tátil, podemos ser tocados, tocar e ser tocados. O corpo humano é som, sonoro, “podemos ser ouvidos e também podemos ouvir e ouvir-nos, neste sentido, sonoros para nós mesmos”. O corpo humano é móvel e também é movente, podemos mover-nos. O corpo humano é uma coisa sensível e também sensível para nós mesmos (CHAUÍ, 2011).
A Fenomenologia é, portanto, diante dessa nossa relação com o mundo, uma habilidade de descrever o mundo, pois, o sujeito que o percebe pode fazer descrições dos fenômenos tais como ele mesmo o percebe, como ele sente, reconhecendo, assim, sua própria existência, enquanto ser que vive com outros seres no mundo, em relações constantes através dos sentidos.

Os sentidos abarcam aquilo que o fenômeno é, porém, é a capacidade de significação do sujeito que o faz ganhar formas, no sentido de ser percebido por perspectivas. O ser presente na questão é o corpo próprio na condição de sujeito subjetivo. O ser está relacionado com o próprio sujeito que percebe. A percepçãose torna uma experiência original, pois é através dela que as coisas são manifestadas no seu sentido primitivo, ou seja, o corpo próprio se depara com o mundo e tudo quanto há nele percebendo-o, esta primeira análise é o que se conhece como experiência original (FIGUEIREDO, 2015, p. 60).

Em Merleau-Ponty, a estratégia de voltar às coisas mesmas é o que se conhece como redução fenomenológica[3]. Porém, para ele, mesmo através da redução, não seria possível conhecer as coisas de uma forma universal (olhar de sobrevoo), seria necessário percebe-las por partes, ou seja, é através da volta às coisas mesmas que podemos compreender melhor os seus significados, pois, “o inacabamento da fenomenologia e o seu andar incoativo não são o signo de um fracasso, eles eram inevitáveis, porque a fenomenologia tem como tarefa revelar o mistério do mundo e o mistério da razão” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 20).
            Em a Femenologia da percepção, Merleau-Ponty reflete sobre a percepção, tendo como sujeito o próprio corpo e a consciência perceptiva. Nesse sentido, “o corpo próprio comporta-se como sujeito; é sujeito-corpo. A consciência, por sua vez, é sujeito de percepção, visto que toda consciência encarnada é, em algum grau, consciência perceptiva” (SOMBRA, 2006, p. 19). Entre muitos desdobramentos, o que é discutido nessa obra é que a consciência perceptiva nos dá um corpo, como corpo próprio, um corpo que é vivido. Portanto, “é a partir da percepção, como uma dialética viva de um corpo ou organismo com seu meio, que devemos conceber a estrutura da consciência presente na ambiguidade e no enigma do próprio corpo” (SOMBRA, p. 114).
Entre tantas proposições importantes na Femenologia, destacamos a análise de Leandro Neves Cardin:

Merleau-Ponty, por sua vez, vai retomar a discussão da relação da alma e do corpo aberta por Descartes, mas fará isso a partir de uma problemática relativamente deslocada. Para ele o que está em questão é o problema da relação entre o fisiológico e o psicológico. Onde estaria o ponto comum no qual ambos se encontram? Para o filósofo, o que pode efetuar a junção entre o fisiológico e o psicológico é a existência. Não o corpo objeto (Köper), mas o corpo que é o meu corpo pessoal (Leib). Sendo assim, é uma ambição de nossa época superar a tradicional dicotomia estabelecida pelo dualismo substancial de estilo cartesiano. Na verdade, o filósofo pretende avançar a interpretação do “nosso século” como aquele que superou a antítese entre o materialismo e o espiritualismo. “Nosso século apagou a linha divisória entre o „corpo‟ e o „espírito‟ e vê a vida humana como espiritual e corporal de parte a parte, sempre apoiada no corpo, sempre associada, até nos seus modos mais carnais, às relações entre as pessoas” (CARDIM, 2007, p. 23).

Nesse sentido, a Femenologia da percepção configura-se como a principal base de investigação para o desenvolvimento dessa pesquisa, uma vez que:

Esta obra tem muito a contribuir nesse sentido, pois aborda o corpo fenomenal, contrapondo-se ao pensamento científico clássico que vê o corpo como objeto. Nela o corpo aparece como nosso modo próprio de se-no-mundo, levando-nos a repensar a subjetividade em sua corporeidade, através de argumentos que sustentem a idéia de que não tenho um corpo, o corpo não é a morada do sujeito, não é algo que posso me despir, me desvencilhar, mas sou o meu corpo” (GOLÇALVES; SILVA; CARDOS; BERESFORD, 2010,p. 83).

        Na concepção fenomenológica da percepção a apreensão dos sentidos se faz pelo corpo, tratando-se de uma expressão criadora, a partir dos diferentes olhares sobre o mundo. Não é um olhar sobre algo, racional apenas, mas um olhar que também é afetado por aquilo que se vê, dessa maneira, o conhecimento se dá no encontro. Porém, o sujeito também não consegue perceber tudo ao mesmo tempo, ou ter a apreensão completa de um objeto, sempre existe um lado que se torna desconhecido pelo sujeito da percepção. O sujeito pode perceber apenas aquilo que se mostra, os fenômenos que aparecem como algo diante do corpo próprio, e a parte que não é mostrada, que está obscura, pode ser um impulso para o sujeito ir até as coisas, por exemplo.

          Dizer que tenho um campo visual é dizer que, por acasião, tenho acesso e abertura a um sistema de seres, os seres visuais, que eles estão à disposição de meu olhar em virtude de uma espécie de contrato primordial e por um dom na natureza, sem nenhum esforço de minha parte; é dizer, portanto, que a visão é pré-pessoal; e é dizer, ao mesmo tempo, que ela é sempre limitada, que existe sempre em torno de minha visão atual um horizonte de coisas não-vistas ou mesmo não-visíveis. A visão é um pensamaneto sujeito a um certo campo e é isso que chamamos de um sentido (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 292).

        Numa visão tradicional da filosofia, a percepção era justificada como uma abordagem intelectualista, considerando que o sentido do percebido está na consciência do sujeito, isto é, o sentido não está no objeto. Contudo, na concepção fenomenológica da percepção considera-se que o sentido não se encontra em nenhum dos pólos considerados isoladamente, mas surge da relação que se estabelece entre eles.

        Sobre a comunicação do corpo com o mundo, Merleau-Ponty afirma radicalmente na Fenomenologia da percepção que o nosso corpo não está no espaço: ele é o espaço.
               A corporeidade pode ser sinônimo de “corpo-vivido” e, neste sentido, refere-se a um corpo sempre em movimento, que se articula e se relaciona entre os outros corpos e os demais objetos do mundo. O “ser-em-movimento” é o “ser-no-mundo” e possibilita o corpo mover-se até um objeto, olhá-lo, cincundá-lo e conhecê-lo sob outros aspectos. Neste sentido, mover-se é sair de si para ser-com, tornando-se sensível ao outro, pois “a consciência é o ser para a coisa por intermédio do corpo (...) e mover seu corpo é visar as coisas através dele, é deixa-lo corresponder à sua solicitação, que se exerce sobre ele sem nenhuma representação” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 193). Portanto, o movimento do corpo desempenha um papel importante na percepção do mundo, como uma maneira de se relacionar ao objeto, distinta da teoria do conhecimento tradicional.
          O corpo próprio é mostrado por Merleau-Ponty como um corpo que habita um mundo fenomênico e não geográfico. Ele está localizado num mundo vivido, porque é ressignificando e transformado pelo sujeito. Desta maneira, o corpo próprio não está apenas localizado em um espaço, mas, ele constrói o próprio espaço habitando-o, buscando situar-se intencionalmente no espaço habitado. “O corpo é nosso meio geral de ter um mundo” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 203).
Contrariarando as ideias cartesianas de um espaço geométrico, Ponty vai diz;

O espaço não é mais aquele falado na Dioptrique, rede de relações entre os objetos, tal como veria uma terceira testemunha de minha visão ou um geômetra que o reconstruiu e o sobrevoa, é um espaço contado a partir de mim como ponto ou grau zero de espacialidade. Eu não o vejo segundo o seu envoltório exterior, eu o vejo de dentro, eu estou englobado nele. Afinal, o mundo está em volta de mim e não diante de mim (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 59).

            Portanto, a percepção, nesse sentido é ter o mundo através do corpo e o corpo através do mundo, nossa abertura ao mundo se faz pela carne, assim como o mundo se abre a nós pela carne.
Merleau-Ponty apresenta a espacialidade sob duas perspectivas: o espaço posicionado e o espaço situado. O primeiro tem a ver com a posição e a localização dos objetos que estão no mundo, compreendidos como coisas, que só ganham sentido quando há um sujeito que as percebe. O espaço de posição tem a ver com a geografia do mundo. Já o segundo espaço, o de situação, aborda uma compreensão onde o sujeito não está apenas inserido no espaço, mas vive esta relação, experimentando a realação om os objetos, percebendo o mundo e resinificando-o. Vamos falar um pouco mais sobre essas duas perpectivas da espacialidade.
              A espacialidade de posição é o que se compreende por espaço geográfico, como dissemos. É o lugar onde o sujeito terá suas experiências concretas, onde perceberá o espaço através de suas distâncias, por exemplo, de suas aproximações ou afastamentos. É uma espacialidade onde os objetos podem ser descritos pelo sujeito através de dados visuais, mensuráveis, pois, “o espaço não é o ambiente (real ou lógico) nem que as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 328). Assim, o espaço de posição é um lugar onde objetos são organizados, ocupando um lugar físico, como uma construção civil num terreno específico, por exemplo.
         A espacialidade de situação é referente ao corpo que, como sistema de ações, vive uma experiência perceptível e, dessa maneira, é uma espacialidade que nunca deixa de estar em relação a quem percebe, isto é,

Enquanto no espaço de posição, o sujeito pode delimitar esquemas para direciconar localizações, na espacialidade de situação o sujeito não tem como meta definir localizações, pois ele mesmo habita o espaço em que está inserido; ele não é um objeto que se pode ser colocado em algum lugar da superfície terrestre. O corpo próprio é que define sua situação, é ele que modifica e ressignifica todo o espaço situado porque, estando nele, habita-o. (FIGUEIREDO, 2015, p. 70)

            A compreensão da espacialidade de situação ocorre através do processo de intencionalidade, porque os movimentos físicos realizados pelo corpo, como caminhar, por exemplo, se dão no espaço de posição, enquanto todo movimento intencional se dá no espaço situado. Esse movimento, ao qual Merleau-Ponty chama de motricidade é a possibilidade para se entender a distinção do movimento mecânico. A relação do sujeito e a coisa pode ser compreendida como uma experiência vivida.
                       
Trata-se de um novo modo de compreender o espaço, não como um lugar, mas como vivência e, assim, Merleau-Ponty não aborda a noção de espaço como não tendo um em si, como pensa a tradição, e nem o para si como uma mera forma da sensibilidade. O mundo não se resume a um determinado lugar em que os objetos são colocados ocupando espaço físico, o filósofo retrata o mundo como um espaço de situação, em que o sujeito habita e não apenas está posicionado, o espaço é vivido. É o sujeito que compreende, dá sentido e se envolve com ele. (FIGUEIREDO, 2015, p. 65)

             A motricidade seria uma intencionalidade original, sendo a consciência em Merleau-Ponty um “eu posso”, ao invéis de um “eu penso” como em Descartes. É através do “eu posso” que se torna possível falar em uma subjetividade estabelecida na capacidade de sentir e de se movimentar. A motricidade do corpo próprio é a intencionalidade e, dessa maneira, “o movimento não é o pensamento de um movimento, e o espaço corporal não é um espaço pensado ou representado” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 192).
           Não é a representação de um pensamento que impulsiona o movimento que será realizado, mas a intenção que o sujeito tem de chegar até um objeto, fora de si, exterior. O espaço corporal não é pensado ou representado, mas sim um espaço vivido, experienciado, pois, o movimento também não consiste em ser pensado e sim experienciado. O espaço não é um espaço vazio, mas habitado por coisas e a relação do sujeito com essas coisas vai ser determinada pelo próprio movimento.

A motricidade não é como uma serva da consciência, que transborda o corpo ao ponto do espaço que nós previamente nos representamos. Para que possamos mover nosso corpo em direção a um objeto, primeiramente é preciso que o objeto exista para ele, é preciso então que o nosso corpo não pertença à região do “em si” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.193).

              O corpo particular do sujeito não é um objeto como qualquer outro do mundo, ele se destaca por ser um sujeito sensível, que percebe e está em relação com os outros objetos, estando, portanto, situado no espaço. Merleau-Ponty disse que o sujeito é aquele que percebe e o objeto é aquele que é percebido. Nesse sentido, um sujeito pode ser um objeto para outro sujeito que o percebe. Porém o sujeito que percebe, diferencia-se dos objetos físicos por ser capaz de compreender sua própria existência.

Ora, para que o objeto possa existir em relação ao sujeito, não basta que este sujeito o envolva com o olhar ou o apreenda assim como minha mão apreende esse pedaço da madeira, é preciso ainda que ele saiba que o apreende ou o olha, que ele se conheça apreendendo ou olhando, que seu ato seja inteiramente dado a sí mesmo e que, enfim, este sujeito seja somente aquilo que ele tem consciência de ser, sem o que nós teríamos uma apreensão do objeto ou um olhar o objeto para um terceiro testemunho, mas o pretenso sujeito, por não ter consciência de si, se dispersaria em seu ato e não teria consciência de nada (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 318).

             Pensar o espaço, em Merleau-Ponty, é entendê-lo como resultado de uma interação do corpo com o mundo. O corpo e o mundo formam um sistema dinâmico. O mundo se torna mundo na medida em que há um sujeito que o percebe e o corpo só se faz corpo pela experiência de estar no mundo. Estando inserido e fazendo parte do espaço, o corpo experimenta uma espacialidade constituída entre ele e as coisas, enquanto presença do mundo percebida. Dessa maneira, “habitando o espaço, o corpo impõe a condição de uma realidade para si e, assim, o espaço deixa de ser algo exterior porque é vivido. Aquilo que é percebido ganha um sentido novo através da situação em que se revela” (FIGUEIREDO, 2015, p. 73).
          Segundo Marilena Chauí, o conceito de experiência, por sua vez, pode ser entendido em Merleau-Ponty como o ponto máximo de proximidade e distância, de pluralidade e unidade, de inerência e diferenciação “em que o Mesmo se faz outro no interior de si mesmo” (CHAUI,1994, p. 474).
            A experiência é a maneira como vemos e como reagimos ao que vemos, ou seja, a experiência da visão, o ato de ver. A experiência é a maneira como falamos sobre aquilo que queremos falar, ou seja, a experiência da linguagem. Em qualquer uma das possibilidades, a experiência é sempre um evento que se dá com o exterior do sujeito, resultando interpretações e análises subjetivas, mas, é sempre no encontro com o outro que se torna possível o ato de experenciar.

A experiência é diferenciadora: vidente-visível, tocante-tocado, falante-falado, pensante-pensado são diferentes, assim como ver é diferente de tocar, ambos são diferentes de falar e pensar, falar é diferente de ver e pensar; pensar, diferente de ver, tocar ou falar. Abolir essas diferenças seria regressar à Subjetividade como consciência representadora que reduz todos os termos à homogeneidade de representações claras e distintas. Porém, a diferenciação própria da experiência não é posta por ela: manifesta-se nela porque é o próprio mundo que se põe a si mesmo como visível-invisível, divisível-indivizível, pensável-impensável. No entanto, a cisão dos termos só é possível porque o mundo como Carne é a coesão interna, a indivisão que sustenta os diferentes como dimensões simultâneas do mesmo Ser. O mundo é simultaneidade de dimensões diferenciadas ou, como escreve Merleau-Ponty, o Ser Vertical cujas raízes estão desnudadas (CHAUÍ, 1994, p. 475).

         A experiência do mundo vivenciada pelo corpo é fundamental para o processo do conhecimento, é no corpo próprio do sujeito que se localizam todos os poderes perceptivos, todos os objetos do mundo se tornam prolongamento do corpo, através da percepção que é fundada no corpo próprio. O sujeito apresenta a centralidade do corpo como principal viés para o conhecimento e, consequentemente, para a experiência do mundo. Essa constatação indica a aceitação de um mundo fenomênico que emerge do meu contato com o outro.
                 O espaço pode propiciar, mediante a sua formulação, experiências possíveis de resgate das sensações vividas por nós em diferentes momentos da trajetória do nosso ser. Relacionamos-nos espacialmente na medida em que vemos, tocamos, cheiramos os objetos e lugares do mundo. As estruturas espaciais são, ao mesmo tempo, um estado (provisório) e é o objeto de um movimento que modifica seu conteúdo (permanente).

Meu corpo é o lugar, ou antes a atualidade mesmo do fenômeno de expressão (Ausdruck), nele a experiência visual e a experiência auditiva, por exemplo, são pregnantes uma da outra, e seu valor expressivo funda a unidade antepredicativa do mundo percebido, e, por ela, a expressão verbal (Darstellung) e a significação intelectual (Bedeutung). Meu corpo é a textura comum de todos os objetos e ele é, ao menos em vista do mundo percebido, o instrumento geral da minha "compreensão" (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 271-272).

                 Dessa maneira, o conhecimento do espaço, portanto, não poderá constituir-se sem uma base filosófica.
                 A corporeidade, “o fato de ser incorporado significa que viver no mundo vem antes do pensamento consciente sobre o mundo: a experiência básica é pré-reflexiva, a reflexão diz respeito ao que é pre-refexivamente dado” (MATTHEWS, 2010, p. 76).
Por isso, a percepção, como Merleau-Ponty conceitua, é quem vai operar na relação corpo x espaço, pois:

No ato de construir o espaço, a percepção e a consciência são condições indispensáveis porque o espaço, e mesmo uma direção nele traçada, só pode existir para um sujeito que a traça. Porém, no ato da percepção é preciso fragmentar esse espaço para perceber e constituir com os sentidos – visão, audição, olfato, paladar, tato. Em especial o olhar, que como uma espécie de “faróis a iluminar”, uma máquina de conhecer, aprende as coisas por onde elas devem ser apreendidas para se tornarem espetáculo (GOLÇALVES; SILVA; CARDOS; BERESFORD, 2010, p. 83).

            A filosofia é a base para a presente pesquisa. As artes, por sua vez, diante de tais constatações, contribuem com importantes ensinamentos para o desenvolvimento filosófico, pois:

O pensamento não pode fixar-se num polo (coisa ou consciência, sujeito ou objeto, visível ou vidente, visível ou invisível, palavra ou silêncio), mas precisa sempre mover-se no entre-dois, sendo mais importante o mover-se do que o entre-dois, pois entre-dois poderia fazer supor dois termos positivos separáveis, enquanto o mover-se revela que a experiência e o pensamento são passagem de um termo por dentro do outro, passando pelos poros do outro, cada qual reenviando ao outro, sem cessar. Eis por que as artes ensinam à filosofia a impossibilidade de um pensamento de sobrevoo que veria tudo de uma só vez, veria cada coisa em seu lugar e com sua identidade, veria redes causais completas, veria todas as relações possíveis entre as coisas, como o olhar do Deus do Leibniz, geometral de todos os pontos de vista. Merleau-Ponty insiste em que o artista ensina ao filósofo o que é existir como um humano (CHAUÍ, p. 475).

          Retomando as questões expostas até aqui, podemos dizer que a grande contribuição de Merleau-Ponty na filosofia foi inserir o homem, por meio da percepção, da experiência, da sensibilidade no centro de uma contradição clássica, tornando o corpo perceptivo como um mediador de antinomias como sujeito e objeto ou o tempo e o espaço.
              Toda experiência corporal é uma experiência espacial e o nosso corpo é o meio geral de ter um mundo, como disse o filósofo (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 193). Nosso corpo existe no espaço e no tempo, nossa presença no mundo se efetiva a partir dos nossos corpos. Se percebemos com o corpo, então o corpo é o sujeito da percepção.
              Transpor a maneira fenomenológica de conhecer o mundo para a relação espetacular que se dá no espaço cênico teatral foi a abordagem principal que minha pesquisa tratou, nesse sentido, o presente estudo foi a mola propulsora dos desdobramentos que se efetivaram na interface entre teatro e filosofia.
           

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TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perpectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel, 2013.




[1] A obra Fenomenologia da Percepção foi escrita em 1945 e é o segundo livro de Maurice Merleau-Ponty. É a sua obra mais conhecida e mais estudada em todo o mundo. Juntamente com seu primeiro livro, A Estrutura do Comportamento, escrita em 1942, Ponty forma uma obra que se completam do ponto de vista de uma filosofia do corpo. Em termos bastantes simples, A Fenomenologia da Percepção trata da experiência que nós mesmos vivemos, a experiência da percepção, do homem como ser-no-mundo (CHAUÍ, 2002, p. 35).
[2] Merleau-Ponty reformula a noção de intencionalidade, sustentada por Hussel, como uma abertura de um campo de possibilidades para um sujeito situado. A compreensão de intencionalidade se dá não no campo dos pensamentos, mas na capacidade perceptiva do sujeito, pois a experiência do corpo no mundo pode ser traduzida como a experiência do corpo no espaço. Por intencionalidade pode-se entender a capacidade do homem de ligar, numa totalidade de significação, o conjunto àquilo que está presente. Isto implica o sentido de criar uma forma de compreensão diferente para o mundo através de outras consciências que habitam e testemunham este mundo (FIGUEIREDO, 2015, p. 42).
[3] Por redução fenomenológica, Merleau-Ponty compreende algo que não desemboca em um puro transcendental, mas nos faz reconhecer, nesse transcendental mesmo, a presença inegável da facticidade e da existência. A redução revela o paradoxo de uma relação de ser que põem em questão as categorias clássicas, recusando formulações excludentes, não sendo nem puro sujeito e nem puro objeto, mas a articulação orgânica e livre deles (FIGUEIREDO, 2015, p. 20).


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